Eu fiz uma peça para não enlouquecer

2017 foram muitos anos em um só. Lancei livros (foram dois), estreei peça como ator e filme como diretor. Fui um dos criadores de uma importante escola de teatro em Mato Grosso, recebi título de doutor e comendador, e ganhei os prêmios APCA e Aplauso Brasil pela minha trajetória no teatro. Não foi pouca coisa.

Mas 2017 foi também o ano mais triste da minha vida inteirinha. Foi o ano em que meu irmão Dimi, um dos meus maiores amores, descobriu um câncer no cérebro, no dia 3 de janeiro; e faleceu exatos dez meses depois, em 3 de novembro.

Enquanto ia vivendo estes dois lados completamente antagônicos, 2017 também foi um ano que deixei de fazer muitas coisas, por conta da doença do meu irmão. Uma delas, por exemplo, foi ter deixado de vir a Cabo Verde na 23ª edição do Mindelact, o festival em que me encontro neste momento, aqui na cidade do Mindelo, na Ilha de São Vicente.

Naquele ano, depois de muitas conversas com meu psiquiatra, resolvi assumir o meu transtorno depressivo, identificado lá atrás, no final dos anos 1990, quando fui diagnosticado bipolar. Para quem já teve conhecidos ou passou por estas águas turbulentas vai saber o que isso significa de verdade. Não é fácil jogar as mãos para o céu e se assumir completamente imperfeito. A depressão joga isso na cara da gente todo o dia. Porque quando ela chega, bloqueia tudo, destrói a capacidade da gente dar e receber afetos. A depressão é a solidão dentro da gente.

Então, em meio a essa turbulência toda, eu e o Rodolfo quisemos fazer uma peça sem ensaios, sem muita conversa, inclusive. Apolínea, resolveríamos tudo em ideias e desde o início eu já sabia: eu não poderia me emocionar em cena. O dionisíaco, tão caro aos Satyros, deveria ser eliminado em minha atuação. Se surgisse – e surge quase sempre, em quase todas as sessões – deveria ser elaborado pelos espectadores; na plateia, portanto.

Primeiro eu elaborei um roteiro, o Rodolfo revisou e trouxe umas ideias. Depois em dois ou três encontros, sempre na mesa, nunca em uma sala de ensaios, a gente fechou o texto definitivo. E a história do Dimi e sua doença atravessava toda a estrutura do trabalho. Nunca eu e o Rodolfo falamos sobre isso, mas certamente a gente começou a se despedir do Dimi com esse trabalho. Nós três sempre fomos muito ligados. A peça se chamou “Todos os Sonhos do Mundo”.

“Todos os Sonhos do Mundo” no Teatro Adamastor, em Guarulhos, maio de 2017

Foi no dia 14 de maio deste 2017 que, em um domingo de dia das mães, o trabalho sem um único ensaio veio ao mundo, no gigante Teatro Adamastor, em Guarulhos. Fizemos a peça no palco e distribuímos os espectadores em um círculo. Deviam ter 30 pessoas, no máximo.

Começou aí a nossa despedida do Dimi. Em gotas homeopáticas, em apresentações que aconteciam em cidades do interior de São Paulo. Foram muitas. E sempre solitárias. Em muitas delas eu não tinha com quem viajar e fazia esforços para convencer um amigo ou outro para ir comigo. Mas tudo isso já fazia parte da história que eu queria contar.

Concebemos uma peça sem nenhum efeito de luz ou som. Nada, além de um iPad, onde leio alguns poemas (a ideia sempre foi não decorar nenhum texto e mudar, de vez em quando, os autores e suas poesias) e, para decretar uma teatralidade, pétalas de rosas vermelhas que eu vou tirando do bolso, durante as apresentações. Um nariz de palhaço, que eu uso no final das apresentações, também compõe a dramaturgia do trabalho.

O projeto inicial sempre foi uma peça de viagem, sem a necessidade de qualquer técnico ou operador. Para ser apresentada em qualquer lugar, em uma sala de aula, se fosse necessário. Aliás, isso aconteceu mais de uma vez.

O grande desafio: que eu chegasse sozinho na cidade, sem nenhum suporte técnico ou de produção. Pela minha timidez – ou complexo de inferioridade, tenho isso também – isso eu nunca consegui fazer, infelizmente.

Então quando o João Branco, diretor do Mindelact – o maior festival de teatro do continente africano –, soube da minha aventura, programou o meu solo para a edição daquele ano, que aconteceu entre os dias 3 e 11 de novembro de 2017.

Capa do livro “Todos os Sonhos do Mundo”, editora Giostri, 2019

Dimi, meu irmão, participava de todo este processo. Sabia, inclusive, que eu estava trabalhando uma peça onde sua história era o ponto fulcral da estrutura dramatúrgica do trabalho. Até quando esteve lúcido – em seus últimos dias de vida ele já não estava mais consciente –, dizia sempre que era pra eu viajar pra Cabo Verde, onde estivemos juntos em uma viagem incrível, em 2013.

Apesar de constar na programação do festival, com bilhetes de viagens comprados e reservas de hotéis confirmadas, não viajei pra Cabo Verde naquela altura. Dimi faleceu exatamente no dia da abertura do festival daquele 2017.

Agora estou no hotel, acabei de chegar do teatro onde, enfim, “Todos os Sonhos do Mundo” foi apresentado, aqui em Cabo Verde. Impossível não pensar nessa história toda e não me emocionar.

Mas hoje, tive certeza. Eu e o Rodolfo não fizemos este trabalho apenas para nos despedirmos do Dimi. Antes, eu quis fazer esta peça pra não enlouquecer. Não é nada fácil estar neste mundão de Deus sem o Dimi. Não era só meu irmão, nem apenas um amigo querido. Era um amor enorme, sabe?

Por tudo isso eu penso o tempo todo neste 2017 que será, pra sempre, o meu maior enigma. Como uma única vida pode suportar tanta alegria e, na mesma proporção, tanta dor? Como pode uma mesma vida ser tão cheia de outras vidas, tão distantes e, ao mesmo tempo, tão particulares?

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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