Não, não está sendo fácil

Na terça-feira, o Rodolfo pediu uma tarefa para nós, do elenco de “As Mariposas”. Consistia em criar um número, a partir de combinações, para nomear nossos avatares no Zoom. Pediu que fossem números que tivessem alguma relação conosco. Bastou para que o ensaio fosse cancelado e mergulhássemos num espaço de trocas de confidências e pedidos de socorro.

Somos 13 atores, mais equipe de criação e técnica, ao todo 18 artistas. Não nos encontramos fisicamente desde março do ano passado, embora estejamos trabalhando diariamente desde então. Detalhe importante: a maioria do grupo trabalha junto há muito tempo; fiz as contas, média de 15 anos. Outro dado fundamental: estamos sendo patrocinados pelo Programa de Fomento ao Teatro, da Secretaria Municipal de Cultura. O que significa que todos nós temos nossos salários pagos com assiduidade. E, não só pelo momento terrível que vivemos, privilegiados, portanto.

Durante quatro horas falamos de nós, de nossas vidas, de nossas casas, de nossos desejos e sonhos, dos nossos bichos, e foi um desfile de tristezas. Todos, ali, estávamos angustiados e precisando de ajuda. Nós, que nos encontramos todos os dias e que nos falamos pelo Whatsapp em vários grupos, a todo momento…

Então fiquei pensando em tudo o que estamos vivendo. Me lembrei de tantas pessoas que nunca mais vi, pessoas que faziam parte da minha vida, do meu cotidiano.

Não consegui dormir direito nessa noite. Pensando na vida que deixei na porta de entrada da minha casa, na rua Augusta, esperando vesti-la a qualquer momento, e cheio de saudades de tanta coisa. É exatamente assim que me sinto. Como se tivesse deixado alguma coisa me esperando no centro da cidade, porque desde o isolamento social tenho vivido no meio do mato, em Parelheiros. Mesmo indo toda semana, duas ou três vezes, para trabalhar na SP Escola de Teatro, sinto que existe uma vida esperando ser vestida, do outro lado da cidade.

Ontem combinei um encontro com uma amiga, que não vejo há quase um ano, próxima segunda, no final da tarde. Sugeri que o encontro fosse no Conjunto Nacional e a gente procuraria, por ali, um lugar para tomarmos um café, para matarmos saudades. Porque eu nunca mais fui à avenida Paulista! Nunca mais! Dez minutos do meu apartamento, minha rua Augusta é um dos cruzamentos mais emblemáticos da Paulista e eu nunca mais caminhei por ela!

Em “A Arte de Encarar o Medo”, a peça digital que produzimos no ano passado, havia uma cena altamente distópica em que as personagens se encontravam no Zoom, para brindar o carnaval. E, de repente, sem que nos déssemos conta direito, a distopia deixou de ser uma previsão para fazer parte das nossas vidas. Sim, com o Bloco do Adorno, no Instagram, eu brinquei o meu carnaval deste ano. Em modo digital!

Estamos sofrendo todes. Porque não é só a luta da geladeira. Mas é a luta da geladeira também. Para muitos, infelizmente, a falta de perspectivas constrói um cenário de muita, muita dor. Para outros, o peso de pensar nos privilégios se transforma em gritos. Mas quando percebemos que estamos distantes, muito distantes de uma solução, nossos afetos se despedaçam e esses gritos que deveriam ser simbólicos viram apenas gritos perdidos num labirinto qualquer…

Enquanto isso eu continuo perdendo o sono. E chorando, cada vez mais.

 

+ foto em destaque: árvore de Ushuaia, na Patagônia Argentina, numa das viagens mais triste da minha vida, em 2017.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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