CORPOS ESTRANHOS
Em Cuba Libre, personagem e filme levantam uma discussão importante
Numa cena de Cuba Libre, documentário de Evaldo Mocarzel que passa hoje na Mostra, Rodolfo García Vasquez e Ivam Cabral, do grupo Satyros, entrevistam dois cubanos. Os caras são gays e fazem uma radiografia da homossexualidade na ilha de Fidel Castro. Recentemente, o próprio comandante pediu desculpas aos gays pelas perseguições que sofreram em Cuba. Um dos entrevistados define sua opção pela homossexualidade como um ato revolucionário. “Diziam que era errado ter relações com pessoas do mesmo sexo. Fiz para desobedecer.” E ele acrescenta que Cuba vive um momento excepcional – nunca, como hoje, houve tanta liberdade para criticar. No cinema, no teatro, nas artes visuais.
Isso é só meia verdade. No debate, após a primeira projeção de Cuba Libre, no domingo, Phedra D Córdoba, a protagonista do filme, disse que, reservadamente, os cubanos que a chamavam num canto, para conversar, longe das câmeras, ofereciam um relato diferente. A situação está mais difícil que nunca. Se o regime não abrir, como na China, o caos será inevitável. Cuba Libre oferece, assim, um interessante material para discussão. Pegando carona em Jafar Panahi e Mopjtaba Mitahmasb, Mocarzel poderia dizer que seu filme não é um documentário. E, se não for, o que é, então?
É a pergunta que não quer calar. Que corpo estranho é Cuba Libre, o filme? Que corpo estranho é a própria Phedra? Nos primórdios da Mostra, Leon Cakoff revelou no Brasil um autor sobre o qual ninguém mais fala, um militante gay alemão chamado Rosa Von Prauheim, que fez filme como Não é o Homossexual Que é Perverso, mas A Situação em Que Vive, Um Vírus não Conhece Moral, etc. É preciso falar sobre a gênese de Cuba Libre. O filme integra uma trilogia de Mocarzel sobre o Satyros. Ele já vinha filmando o grupo de teatro da Praça Roosevelt. Acompanhou-o quando foi convidado para ir a Cuba.
Phedra, como integrante da companhia, foi junto. Drag queen, atriz, há 50 anos ela deixara Cuba e nunca mais havia voltado. Rodolfo García Vasquez contou que Mocarzel não sabia direito o filme que ia fazer – nem que estava fazendo. Por momentos, Mocarzel angustiava-se. O filme sobre o Satyros virou um filme sobre o retorno de Phedra D a Cuba, sobre as restrições a homossexuais na ilha e sobre a nova era que se abre. Tudo isso está lá, mas será mesmo sobre isso? Antes que o filme comece, precedendo a imagem, o som, sobre um fundo negro, apresenta uma fala de Phedra. Ela diz que o reflexo que vê no espelho é sua alma – e a de Phedra, que nasceu homem, é feminina.
Rosa Von Prauheim fez filmes sobre homens que liberaram as mulheres dentro deles e remodelaram seus corpos. Phedra D fez-se mulher. O pai, que a apoiou, não chegou a vê-la na sua plenitude, mas foi uma influência decisiva – disse-lhe que, em circunstância nenhuma, não perdesse a dignidade. Phedra seguiu o conselho. Fez dele a sua bússola. Ela se refere a si, à persona que criou, como “teatro”. É o que o filme de Mocarzel oferece. É preciso desconfiar das aparências. Mais do que sobre homossexualidade, família, repressão, direito dos gays, Cuba Libre é sobre Cuba. A ilha está desabando, mas os slogans revolucionários continuam de pé. Ou será o oposto? Os slogans resistem, todo o resto desaba.
Cuba Libre deixa um tanto a desejar como cinema. É menos “acabado” do que outros documentários de Mocarzel. Mas é instigante, e intrigante, pelas várias discussões que levanta. Mocarzel pode estar falando sobre gays. Ele filma shows de travestis – clandestinos, ou ilegais, porque o regime não abriu tanto para permitir essas coisas -, mas é curioso assinalar um detalhe. Ao chegar em Havana, Phedra vai para a rambla. Enquanto ela fala sobre seu passado, o início da luta para ser mulher, garotos se banham no mar. Nenhum diretor gay teria resistido a filmar aqueles corpos. Mocarzel os ignora, ou quase. Foge, por que?, do imaginário gay. Porque não é este o tema de Cuba Libre.
Rodolfo García Vasquez contou uma história esclarecedora. Como convidados do governo, os integrantes do Satyros tiveram direito a hospedagem numa casa especial. Recebiam comida. Acharam insossa. Pediram autorização para cozinhar. Queriam comprar alho e cebola para condimentar a comida. Um figurão do partido cismou que um japonesinho do grupo era espião da CIA e queria envenenar as pessoas para criar um incidente internacional. Pura paranoia, e outra história que não está na tela. Mocarzel talvez devesse rebatizar seu filme – Cuba Libre?, com interrogação. A política está lá, e é um fundo importante. Mas Phedra D Córdoba sabe. Diz que, mais que político, o filme é poético. Só assim, segundo ela, Mocarzel consegue captar o cubano, e o habanero, naquilo que têm em comum com o brasileiro – a alegria, a sensualidade.
Fonte: Luiz Carlos Merten, Estadão, 25 de Outubro de 2011