Ele tem 25 anos e é bem bonito. Nasceu na província e usa uma aliança de ouro no dedo anelar da mão esquerda. Mas em Cuba isso não quer dizer muita coisa. Os casais, em geral, não têm o costume de usar anéis de compromisso.
Chama-se Alfredo e está terminando neste semestre o curso de atuação. Vive em Havana, no alojamento de estudantes do Instituto Superior de Artes – ISA, onde estuda, em Playa, bairro periférico no sudoeste de Havana.
Perdeu o pai, agricultor, aos seis anos, de leptospirose. Quando tinha nove, sua mãe, depois de uma tristeza enorme, casou-se pela segunda vez. Ganhou, dois anos depois, uma irmã.
Aos 16 anos, seu padrasto foi submetido a uma cirurgia de apêndice e morreu. Desde então, sua mãe vive um desalento do tamanho da angústia que assola sua alma.
Há exatos 5 anos, Alfredo deixou a província em busca de um sonho: um lugar no teatro. Eu o conheci há uns anos, quando estive em Cuba pela primeira vez. O garoto, aos 20 anos, recém chegava em Havana.
Estive com ele na semana passada. Em seus olhos – e em sua alma –, o horror da maturidade. A partir de julho, terá que deixar seu quarto no ISA e cumprir, por dois anos, o serviço social – que é a forma pela qual todo recém saído de um curso superior é obrigado a retornar ao governo o investimento realizado em seus estudos.
Alfredo, porém, foi aceito em dois grupos de teatro e terá que escolher um. Está indeciso. Mas sua preocupação maior neste momento é menos artística. Com, em média, R$ 25 mensais – que irá receber do governo –, não tem ideia do que fará para pagar aluguel, comer, se vestir. Sim, alugam-se casas em Havana. Pior: a preços que seriam praticados aqui em São Paulo. Visitei com ele um de seus possíveis endereços. Custa cerca de R$ 180 por mês.
Lembrei agora do Rafael, ator de “Satyricon”, que tem 20 anos e vive em um quarto na Bela Vista, por exatos R$ 250. Estuda Artes do Palco na PUC, como bolsista. Acumula, além do trabalho no Satyros, a função de garçom em bares e restaurantes e consegue faturar cerca de R$ 1,5 mil/mês.
E sei que entre o Alfredo e o Rafael existe um mar de improbabilidades. A cerveja em lata, por exemplo, que Rafael paga cerca de R$ 3,50 e Alfredo R$ 3,00. Ou o cigarro Marlboro, consumido pelos dois, que custa para o Rafael R$ 6,00 e para o Alfredo R$ 9,00, quando tem dinheiro.
Mas falava do Alfredo, o cubano. Que traz no dedo anelar da mão esquerda a aliança de ouro do pai que morreu de leptospirose e que tem uma irmãzinha que vive com a mãe na província. E que, mesmo enfrentando todos os problemas comuns da sua idade – ah, o futuro, sempre ele! – não deixaria o seu país por nada neste mundo. Ele teme a pobreza dos meninos de rua do nosso País, escancarada nos canais de tevê cubanos.
E o futuro do Alfredo é tão incerto quanto foi o meu quando tinha a sua idade. Incerto como o do Rafael que mata dez leões por dia para se manter vivo neste planeta.
Ivam, meu querido, minha vaigem a Cuba em 96, se não me engano, foi inesquecível. Começou que não descemos em Havana e sim em Santiago, por causa de uma daquelas tempestades que varrem tudo… Só ficamos sabendo disso ao chegar em Havana. Sonhei anos a fio em conhecer Cuba, por tudo o que havia lido… e voltei com uma trava na garganta… o sofrimento do povo e o depoimento dos brasileiros – bailarinos bolsistas – foram um duro golpe no que eu considerava o modelo ideal de vida..O Antunes me pediu para levar um pacote com objetos de higiene pessoal, para uma atriz e diretora sua amiga… Quase não lhe pude entregar pela enchente que a impedia de sair de seu prédio… E até hoje sofro com as imagens e lembranças que trouxe comigo… um povo tão amável, sofrido merecia um melhor destino! Que pena!
Então… tão complexo este mundo, não é? Beijos, querida.
É esta incerteza que não me faz dar um passo adiante. Lindo texto Ivam, realista e autentico como você. Torço pelos corajosos sem dúvida os dois são.
E você é um grande cara. Abraço.