Teatro: como será o amanhã?

Coluna analisa os possíveis caminhos que as artes cênicas tomarão no pós-pandemia e de que forma essa nova realidade impactará a produção artística.

por Bruno Zambelli

a semana passada, comentamos por aqui algumas medidas tomadas em território europeu para garantir uma volta segura das atividades culturais, entre elas espetáculos teatrais. Das mais simples, como o distanciamento entre os espectadores nas filas e a medição da temperatura de todos, às mais inusitadas, como a colocação de manequins em uma plateia num teatro de Madrid, a única certeza que se tem ao olhar para esse retorno é a de que a experiência cênico-cultural, seja do ponto de vista da produção, da apresentação ou da apreciação, mudou radicalmente.

Passados alguns dias dessa retomada já é possível ter uma ideia, mesmo que vaga, do que a pandemia representa, e, principalmente, como é possível se readequar a essa nova realidade que o covid-19 nos impõem há pelo menos 100 dias. Questões econômicas, estéticas, estruturais e até mesmo algumas de ordem quase filosófica começam a surgir junto às analises e compreensões dessa “nova fase” que a cultura começa escrever. Por isso, com o intuito não só de informar mas também de discutir e pensar essa nova realidade cultural, a coluna “Em Cena” comenta essa semana, rapidamente, algumas dessas questões.

Teatro transmitido pela internet, é teatro?

A grande, e talvez menos urgente, dessas questões diz respeito ao entendimento, ou definição, do que é ou deixa de ser de fato uma obra teatral. Com o início do isolamento e a impossibilidade de reabertura dos espaços, diversos grupos e artistas encontraram na internet a saída para dar continuidade às suas atividades. Se músicos, sejam eles populares ou menos conhecidos, encontraram na grande rede uma possibilidade de criar uma nova agenda de shows, a coisa em relação ao teatro foi diferente.

É impossível dizer que o público não aderiu ao novo modo de se fazer teatro, mas as dúvidas em relação a esse novo jeito de se apresentar espetáculos foram inevitáveis, o que não diminui em nada o sucesso dessas obras. Ivam Cabral, um dos fundadores d’Os Satyros, por exemplo, demonstrou números incríveis que comprovam o sucesso da temporada virtual da excelente A arte de encarar o medo.

O entusiasmo da grupo paulistano é o mesmo de Ruth Mackenzie, diretora do renomado Théatre du Châtelet, na França. Depois do sucesso de algumas iniciativas online o espaço aposta em um festival digital, enquanto a maioria das salas de Paris retomam suas atividades presenciais. Batizado de Après, Demain, algo como “depois de amanhã”, a nova aposta do Châtelet é a prova de que os meios digitais vieram pra ficar quando o assunto é teatro.

Segundo Mackenzie, é desnecessário, e até mesmo cafona, buscar uma definição em tempos de adequação. Tem razão a artista francesa, e o famoso Volksbühne, de Berlim, é mais uma prova disso. Originalmente programado para acontecer em maio de 2020, o festival Postwest conta com doze peças criadas especialmente por artistas de dez países diferentes, todas elas apresentadas digitalmente e disponibilizadas no site do teatro alemão.

A grande verdade é que o mundo digital, que já havia conquistado seu espaço nas apresentações culturais, passa a ser parte indissociável da feitura e do cenário dessas artes a partir de agora, e tentar diminuir ou não aceitar essa verdade é renegar o seu próprio tempo e as possibilidades de reinvenção que essa nova ferramenta pode proporcionar a artistas e público. Afinal de contas, goste-se ou não, todo teatro é teatro.

A pandemia influencia a criação

Adequação sempre significa reinvenção, impossível fugir dessa verdade. Por isso, para se adaptar aos novos tempos, grupos teatrais usam a criatividade para que algumas adequações sejam incorporadas à peça de maneira natural. Um exemplo interessante pode ser visto na montagem de Maria Stuart, em cartaz no Theater an der Parkaue, também em Berlim. Na peça, os figurinos ganharam acessórios exagerados, alongados, correntes que delimitam a aproximação dos atores. Apesar de resolver uma questão prática, a escolha tem um resultado plástico interessante e ajuda a compor internamente a distância que cria tensões e tramas entre as personagens.

O tema do isolamento também está em voga, seja em apresentações na internet ou nas peças que vagarosamente voltam aos circuitos, como não poderia deixar de ser. O motivo parece evidente: apesar de não ter obrigação alguma de representar factualmente os acontecimentos cotidianos, a arte dialoga com a sociedade, compreendendo e refletindo seus anseios e dificuldades mais urgentes, como a questão do isolamento, da impossibilidade, da alienação decorrente do abandono e da iminência da morte.

A economia pode enterrar uma arte que agoniza há tempos?

Se algo nisso tudo é claro é o fato de que artistas, em sua maioria, não vivem lá uma vida tranquila. Os malabarismo financeiros, os projetos engavetados e o medo do futuro fazem parte do cotidiano de nove em cada dez artistas brasileiros. A vida fora do mainstream tem mais perrengue e metro lotado do que coquetéis e orgias, pasmem. Fora toda essa agonia, o anúncio da quebra do gigantesco e milionário Cirque du Soleil e o anúncio recente de que a Broadway não retomará suas atividades no ano de 2020 causou pânico e gerou incertezas em pindorama.

A verdade é que por aqui, nessas terras devastadas, o artista já é um sobrevivente há tempos, e manter-se vivo e atuante é indiscutivelmente um de seus maiores ofícios, o que não quer dizer de maneira alguma que esse deve ser ou que devemos continuar por esse caminho. É essencial aos artistas encontrar de alguma forma o tão sonhado equilíbrio entre estética e economia, exigindo do poder público não apenas apoio, mas condições de criar e sobreviver de seu ofício.

Uma vida de migalhas não é uma vida que vale a pena ser vivida.

O teatro resiste, como sempre a duras penas

Precisaremos aprender ainda mais a lidar com a escassez. O futuro demonstra que um possível retorno, ainda muito distante da realidade brasileira, trará consigo diversos contratempos. A diminuição do público, da grana, dos espaços e das possibilidades é uma verdade tão doída quanto estabelecida nesse novo cenário. Volto a insistir que o tempo é de luta, e não de chororô ou lamentações.

A crise que se impõe ao mundo é das bravas, procela violenta, mas desistir nunca foi uma opção. Organizações coletivas, sindicatos atuantes e representativos e uma nova política cultural são necessários para a sobrevivência de grupos e artistas. Como nada se conquista sozinho, é preciso mais do que nunca que artistas estejam organizados em frentes de combate político para exigir soluções que possibilitem a resistência e a manutenção de espaços, bem como o incentivo à criação de tantos outros. A cultura, a beleza e a poesia são tão necessários como o ar que respiramos e devem ter sua importância reconhecida nesse período de miséria humana.

Nessa época de incerteza que atravessamos, é difícil apontar um caminho, um norte que seja para mirar no horizonte. São tempos difíceis esses de pandemia. Apesar dessa falsa realidade que vivemos, imposta por um Estado omisso e genocida, sabemos que a cada dia seremos obrigados a pelejar com a morte, enfrentar o vírus e o medo, matar na dentada os leões que o governo Bolsonaro mantêm na coleira para intimidar a todos os brasileiros. Apesar disso, e também por essa mania que temos de continuar a caminhar, sabemos que é possível, é preciso construir esse novo amanhã. Nem que seja na base da insistência. Nem que nos custe até aquilo que julgamos não ter preço. É preciso. E ele, como virá? Com será? Não sabemos.

O certo é que por mais que alguns não queiram, o amanhã surgirá anunciando um novo dia. Como se dará esse dia? De que modo ele vem pelo horizonte? Não importa. Talvez ele chegue como uma tragédia a galope, ou talvez cole de manso, sem se fazer entender ou perceber, surgindo na borda do dia junto ao primeiro canto de um galo qualquer. Quem sabe? Existe também a possibilidade cada vez mais real de que, ao menos para alguns de nós, esse amanhã nem venha, preguiçoso que só ele, e nos deixe a ver navios perdidos no nada do breu do tempo. Impossível arriscar um palpite. Impossível.

O certo é que o futuro exigirá de todos apenas uma coisa: coragem pra suportar. E nisso, nesse lance de suportar, de sentir no couro cansado a surra da vida, nós, artistas, infelizmente somos especialistas. Pode vir, crise. E vem quente que por aqui a coisa ferve até quando a temperatura não ajuda.

Fonte: Escotilha

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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