Claudia Tozatto, a garota folgazã

Em 1976 eu tinha 12 anos e estudava na terceira série do ginásio. Eu era da turma do fundão. Menos por convicção e mais por timidez, é verdade. Mas o meu fundão sempre foi um lugar curioso. Não era só um lugar dos desgarrados e dos rebeldes, como costumam ser os fundões de qualquer escola. Era também o espaço dos tímidos, e eu fazia parte deste grupo.
 
Verdade, verdadeira, é que eu sempre iniciava o ano nas primeiras carteiras, na frente. Mas, com o passar do tempo, eu sempre caía no fundão, onde eu sabia, era o meu lugar originário.
 
Mas naquela terceira série do ginásio, já no fundão, eu era vizinho da Claudia Tosatto, a garota mais bonita da nossa turma e uma das mais inteligentes também. Embora a gente tenha estudado por muitos anos juntos, me lembro como se fosse hoje daquele dia, num dos intervalos de uma de nossas aulas – e depois, todos os dias, durante muito tempo –, a Claudia cantando uma canção que, pelo suingue, primeiro me despertou paixão e, depois, muita curiosidade.
 
𝑻𝒆𝒄𝒐, 𝒕𝒆𝒄𝒐, 𝒕𝒆𝒄𝒐, 𝒕𝒆𝒄𝒐, 𝒕𝒆𝒄𝒐
𝑵𝒂 𝒃𝒐𝒍𝒂 𝒅𝒆 𝒈𝒖𝒅𝒆 𝒆𝒓𝒂 𝒐 𝒎𝒆𝒖 𝒗𝒊𝒗𝒆𝒓
𝑸𝒖𝒂𝒏𝒅𝒐 𝒄𝒓𝒊𝒂𝒏ç𝒂 𝒏𝒐 𝒎𝒆𝒊𝒐 𝒅𝒂 𝒈𝒂𝒓𝒐𝒕𝒂𝒅𝒂
𝑪𝒐𝒎 𝒂 𝒔𝒂𝒄𝒐𝒍𝒂 𝒅𝒐 𝒍𝒂𝒅𝒐, 𝒔ó 𝒋𝒐𝒈𝒂𝒗𝒂 𝒑𝒓𝒂 𝒗𝒂𝒍𝒆𝒓…
 
A curiosidade acontecia, também, porque a letra da canção falava de uma menina que:
 
𝑵ã𝒐 𝒇𝒂𝒛𝒊𝒂 𝒓𝒐𝒖𝒑𝒂 𝒅𝒆 𝒃𝒐𝒏𝒆𝒄𝒂, 𝒏𝒆𝒎 𝒕ã𝒐 𝒑𝒐𝒖𝒄𝒐 𝒄𝒐𝒏𝒗𝒊𝒗𝒊𝒂
𝑪𝒐𝒎 𝒂𝒔 𝒈𝒂𝒓𝒐𝒕𝒂𝒔 𝒅𝒐 𝒔𝒆𝒖 𝒃𝒂𝒊𝒓𝒓𝒐, 𝒒𝒖𝒆 𝒆𝒓𝒂 𝒏𝒂𝒕𝒖𝒓𝒂𝒍
𝑽𝒊𝒗𝒊𝒂 𝒆𝒎 𝒑𝒐𝒔𝒕𝒆𝒔, 𝒔𝒐𝒍𝒕𝒂𝒗𝒂 𝒑𝒂𝒑𝒂𝒈𝒂𝒊𝒐
𝑨𝒕é 𝒔𝒆𝒖𝒔 𝒒𝒖𝒂𝒕𝒐𝒓𝒛𝒆 𝒂𝒏𝒐𝒔 𝒆𝒓𝒂 𝒆𝒔𝒔𝒆 𝒔𝒆𝒖 𝒎𝒂𝒍
 
Eu quis saber mais a respeito da música e descobri que, composta por Pereira da Costa e Milton Villela, havia sido gravada por uma cantora chamada Gal Costa e que, neste mesmo ano, cantava a “Modinha para Gabriela”, de Dorival Caymmi, que era tema de abertura da novela homônima da Globo, que passava às dez da noite.
 
Mas na minha casa a gente dormia cedo, sempre muito antes das dez, e também não havia televisão por lá. Assim, eu comecei a prestar atenção naquela cantora e, com ela, descobri a obra de Jorge Amado que devorei quase na totalidade, disponível na biblioteca pública da minha cidade, em edições da Martins Fontes, sempre muito bem cuidadas, com ilustrações e capa dura em tom vinho.
 
Penso hoje que Jorge Amado me revelou o mundo. Embora gostasse bastante de ler, até aquele momento minhas leituras eram pontuadas pela minha mãe, também leitora voraz, que gostava de Machado de Assis e de José Mauro de Vasconcelos, e que durante toda a minha infância organizava rodas de leituras com a família, sempre após o jantar.
 
Então sempre soube. Foi a Claudia que, através daquela “Teco-Teco, me deu a chave da minha independência. De escolher o que, através das leituras daquela época, o que eu queria fazer da minha vida, sobretudo. E, com isso, iniciar a construção do artista que, já neste momento, aos 12 anos, começava a se formar em mim.
 
Eu nunca mais me esqueci da Claudia. Pensava nela de vez em quando, mas nossas vidas acabaram seguindo rumos contrários. Pelos amigos comuns, sabia que ela estava morando na Suíça, já há bastante tempo. Até que uns dias atrás eu sonhei com a minha infância e com aquela cena da terceira série do ginásio onde, liderados por ela, cantávamos “Teco-Teco”.
 
Acordei com tanta saudade da Claudia que fui ao Facebook e descobri seu perfil. Enviei uma mensagem e rapidamente recebi sua resposta me dizendo que estava no Brasil e que na semana do dia 10 estaria em São Paulo. Então marcamos um encontro para ontem, ela e seu marido iriam ao Satyros assistir “Pessoas Brutas”.
 
Foi tão emocionante! Bem antes das 21h eu estava na frente do Espaço dos Satyros, coração disparado, esperando a minha amiguinha de infância que não via há mais de 40 anos. Sim, ali eu era, mais uma vez, o garoto tímido de 12 anos prestes a encarar a menina mais linda e irreverente da minha infância.
 
Ah, foi lindo! Descobri uma mulher incrível e ainda conheci seu marido, o escutor Berin Sbampato. A história de vida dos dois, suas conquistas, suas tragédias, o jeito de olhar e de estar no mundo, tudo tão especial!
 
E, imediatamente, tive certeza, absoluta mesmo, que como meu querido Contardo Calligaris afirmava, até porque a felicidade é só uma utopia, não quero ser feliz. Como a Claudia, eu quero é ter uma vida interessante.
Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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