SETEMBRO AMARELO | O que o teatro me ensina todos os dias

Estamos em setembro. Setembro amarelo. Para lembrarmos que o problema da depressão não é um assunto qualquer e que precisamos falar sobre ele. Daí, me lembro que no ano passado, nesta época, estava fazendo meu solo, “Todos os Sonhos do Mundo”, exatamente para falar sobre o assunto.

Quem me acompanha sabe que fui ao inferno por causa da depressão. Como não sabia como lidar com isso, sofri durante anos querendo encontrar uma saída para o vazio que me tomou de sobressalto.

O desespero veio, primeiro, porque não entendia o que estava acontecendo comigo, com o meu corpo, com o que pensava, com meus afetos. Demorou para que eu entendesse que estava doente. Ninguém leva muito a sério a melancolia. Parece coisa menor, a gente demora pra entender que está doente.

A mudança, de verdade, aconteceria em 2017, o ano que foi muitos anos em um só. Neste 2017, lancei livros (foram dois), estreei peça como ator (mas de uma, também) e filme como diretor. Fui um dos criadores de uma importante escola de teatro em Mato Grosso, recebi título de doutor e comendador, e ganhei os prêmios APCA e Aplauso Brasil pela minha trajetória no teatro. Também recebi o Título Cidadão Paulistano, da Câmara Municipal de São Paulo. Não foi pouca coisa.

Mas 2017 foi também o ano mais triste da minha vida inteirinha. Foi o ano em que meu irmão Dimi, um dos meus maiores amores, descobriu um câncer no cérebro, no dia 3 de janeiro, e faleceu exatos dez meses depois, em 3 de novembro.

Enquanto ia vivendo estes dois lados completamente antagônicos, 2017 também foi um ano que deixei de fazer muitas coisas, por conta da doença do meu irmão.

Naquele ano, depois de muitas conversas com meu psiquiatra, resolvi assumir o meu transtorno depressivo, identificado lá atrás, no final dos anos 1990, quando fui diagnosticado bipolar. Para quem já teve conhecidos ou passou por estas águas turbulentas, vai saber o que isso significa de verdade. Não é fácil jogar as mãos para o céu e se assumir completamente imperfeito. A depressão joga isso na cara da gente todo o dia. Porque quando ela chega, bloqueia tudo, destrói a capacidade da gente dar e receber afetos. A depressão é a imperfeição do amor, a solidão dentro da gente.

Então, em meio a essa turbulência toda, eu e o Rodolfo quisemos fazer uma peça. E a história do Dimi e sua doença atravessava toda a estrutura do trabalho. Nunca eu e o Rodolfo falamos sobre isso, mas certamente a gente começou a se despedir do Dimi com esse trabalho. Nós três sempre fomos muito ligados. A peça se chamou “Todos os Sonhos do Mundo”.

Foi no dia 14 de maio deste 2017 que, em um domingo de dia das mães, o trabalho veio ao mundo, no gigante Teatro Adamastor, em Guarulhos. Fizemos a peça no palco e distribuímos os espectadores em um círculo. Deviam ter 30 pessoas, no máximo.

Começou aí a nossa despedida do Dimi. Em gotas homeopáticas, em apresentações que aconteceram, primeiro, em cidades do interior de São Paulo. Foram muitas. E sempre solitárias. Em muitas delas eu não tinha com quem viajar e fazia esforços para convencer um amigo ou outro para ir comigo. Mas tudo isso já fazia parte da história que eu queria contar.

Concebemos uma peça sem nenhum efeito de luz ou som. Nada, além de um iPad, onde leio alguns poemas (a ideia sempre foi não decorar nenhum texto e mudar, de vez em quando, os autores e suas poesias) e, para decretar uma teatralidade, pétalas de rosas vermelhas que eu vou tirando do bolso, durante as apresentações. Um nariz de palhaço, que eu uso no final das apresentações, também compõe a dramaturgia do trabalho.

O projeto inicial sempre foi uma peça de viagem, sem a necessidade de qualquer técnico ou operador. Para ser apresentada em qualquer lugar, em uma sala de aula, se fosse necessário. Aliás, isso aconteceu mais de uma vez.

Dimi, meu irmão, participava de todo este processo. Sabia, inclusive, que eu estava trabalhando uma peça onde sua história era o ponto fulcral da estrutura dramatúrgica do trabalho. Até quando esteve lúcido – em seus últimos dias de vida ele já não estava mais consciente.

Mas hoje, tenho certeza. Eu e o Rodolfo não fizemos este trabalho apenas para nos despedirmos do Dimi. Antes, eu quis fazer esta peça pra não enlouquecer. Não é nada fácil estar neste mundão de Deus sem o Dimi. Não era só meu irmão, nem apenas um amigo querido. Era um amor enorme, sabem?

Por tudo isso eu penso o tempo todo neste 2017 que será, pra sempre, o meu maior enigma. Como uma única vida pode suportar tanta alegria e, na mesma proporção, tanta dor? Como pode uma mesma vida ser tão cheia de outras vidas, tão distantes e, ao mesmo tempo, tão particulares?

Depois veio a pandemia e tivemos que vir para a internet. Tive que compreender algumas coisas. A primeira, a mais complicada, foi tentar entender como eu podia caber dentro de uma live, um espaço destinado, em sua totalidade, ao humor ou à diversão. Minha peça se tratava de um tema bastante complicado. Que pode, claro, fazer muito sentido neste tempo de isolamento, mas – e por isso mesmo –, um tema que a gente não quer muito falar e tem evitado, muitas vezes. Por outro lado, sabemos, precisamos falar sobre este assunto, é urgente.

Fico pensando nas vidas de todos nós que, temos a sensação, deixamos do lado de fora da porta de entrada de nossas casas. É um momento difícil, ainda. Em que a vida duela com a própria vida tentando entender como serão as coisas a partir daqui.

E é isso que o teatro me ensina todos os dias. Que precisamos resistir a tudo e a todos, o tempo inteiro. Porque descobri, há tempos já, que viver não basta. E as emoções, erra quem pensa que são características humanas, tão somente. São da vida, de todos os seres, paisagens e endereços.

Não farei “Todos os Sonhos do Mundo” neste setembro amarelo. Infelizmente. Porque fui atropelado pelo tempo, não pensei antes e não me organizei, só por isso. Mas não queria ficar em silêncio sobre esse tema tão pouco falado e, ainda, cheio de tabus. Existem muitas pessoas passando por isso, sofrendo com suas angústias e, pior, sem saber que estão doentes. Porque a depressão não necessariamente se apresenta através da tristeza, tão somente. A euforia também pode levar ao sofrimento. Quando juntas é terrível e essa combinação pode levar uma pessoa ao fim de todas as suas perspectivas.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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