Nos anos 2000, tive o privilégio de assistir à peça “120 Dias de Sodoma”, dirigida por Rodolfo Garcia Vázquez. Foi um momento de identificação imediata com a companhia, um verdadeiro encantamento que abracei por completo. O elenco, a direção, a trilha sonora de Erik Satie e o espaço subterrâneo do Satyros 2, que mais tarde se transformaria na Estação Satyros, tudo isso me cativou profundamente. Era mais do que um espaço underground; era um espaço de contestação, o lugar onde sempre desejei estar.
Não demorou muito para me inscrever em uma oficina no Satyros e, posteriormente, no Núcleo Experimental do Satyros. Essa experiência gerou diversos trabalhos e culminou em minha participação no elenco de “Satyricon”, sob a primorosa direção de Rodolfo. Logo naquela época, participei da minha primeira Satyrianas, um evento do qual nunca mais quis me desligar.
Minha conexão com a Companhia de Teatro Os Satyros e as Satyrianas plantou um jardim em minha alma, um jardim que cuido com carinho a cada dia. Foi nas Satyrianas que iniciei minha jornada como performer, expandindo as possibilidades da minha expressão como atriz. Tornei-me não apenas uma atriz, mas, também uma performer, dramaturga e roteirista. Tudo começou com a Companhia de Teatro Os Satyros, a SP Escola de Teatro e as Satyrianas.
As Satyrianas é reconhecida como um dos maiores eventos culturais e festivais da América Latina. A Maratona Cultural Satyrianas, uma celebração da primavera, oferece 78 horas ininterruptas de programação, abrangendo teatro, performance, cinema, literatura e música. É um evento oficial no calendário da cidade e do estado de São Paulo, com uma projeção internacional. Milhares de artistas de todo o Brasil participam anualmente, e intercâmbios culturais são promovidos com instituições na Suécia, Cabo Verde, Finlândia, Portugal e Croácia.
O que mais admiro nas Satyrianas, além da sua impressionante potência como festival, é o seu caráter libertário e a promoção da arte de todos os artistas. É também uma oportunidade única para conhecer pessoas incríveis que podem abrir portas para futuros projetos criativos.
Na 24ª edição das Satyrianas em 2023, aconteceu uma grande homenagem , um tributo a Zé Celso Martinez Corrêa. Com o tema: Re_Existir no Zé Fênix . Houve uma exposição notável ocupou o saguão da SP Escola de Teatro, ressaltando a transcendência única de Zé Celso, que desafia qualquer definição ou elogio convencional. Seu legado, imponente como um gigante, perpetuará o Teatro Oficina por gerações a fio. Aqueles que tiveram a oportunidade de participar das Satyrianas de 2023 se sentiram tocados e inspirados por sua presença. Evocamos com gratidão a memória de Zé Celso, um verdadeiro ícone do teatro. Foram 86 horas ininterruptas de programação. Com 12 locais de apresentação, entre eles, Espaço dos Satyros, Cine Satyros Bijou, SP escola de Teatro, Parlapatões, Presidenta, Galeria Olido, Parque Augusta, Cia Ator, Teatro Oficina, e a tenda da Praça Roosevelt.
Com mais de 400 atrações. E a abertura da edição das satyrianas, foi no teatro Oficina, com a peça modernista de Flávio de Carvalho, O Bailado do Deus Morto.
Vamos falar um pouco agora da “Cia de Teatro Os Satyros”
A Companhia de Teatro Os Satyros foi fundada em 1989 na cidade de São Paulo por Rodolfo Garcia Vázquez e Ivam Cabral. Neste mesmo ano, a companhia assumiu a direção do Teatro Bela Vista. Com a estreia de “Saló, Salomé” em 1991, Os Satyros começou a aprofundar sua pesquisa teatral.
O espetáculo participou do Festival Fitei em Portugal e do Festival Castillo de Niebla na Espanha. Posteriormente, a companhia estabeleceu uma sede em Portugal. Em 1994, com o retorno ao Brasil, inicialmente se instalaram em Curitiba, e a partir desse momento, o grupo trabalhou entre o Brasil e Portugal.
Em 1997, eles dirigiram várias produções na Instituição Alemã Interkunst, localizada em Berlim. Finalmente, em 2000, a companhia se estabeleceu na Praça Roosevelt, sendo responsável pelo processo de revitalização desse local, que antes era considerado perigoso. Pouco a pouco, outras companhias também se juntaram à Praça, transformando-a em um centro de efervescência cultural muito significativo.
Em 2022, Os Satyros inauguraram a sala de cinema Cine Satyros Bijou, batizada em homenagem a Patrícia Pillar. Com 34 anos de existência, mais de cem peças de teatro apresentadas em 37 países e inúmeros prêmios recebidos, incluindo os prêmios Shell, APCA, Mambembe, Apetesp e o Governador do Estado do Paraná.
Os Mestres: Rodolfo García Vázquez e Ivam Cabral
Rodolfo Garcia Vázquez e Ivam Cabral são verdadeiros mestres, destacando-se como brilhantes no mundo do teatro e da cultura. São os visionários por trás de uma companhia renomada, agraciada com prêmios e celebrada internacionalmente, além de serem os fundadores e guias da prestigiada SP Escola de Teatro. A vastidão de realizações em seus currículos é de tal magnitude que descrevê-las integralmente demandaria um tempo considerável. Obras poderosas como “Filosofia de Alcova,” “120 Dias de Sodoma,” “De Profundis,” “Sappho de Lesbos”, “Transex” e “Justine”, e atualmente, as Bruxas de Salém, são apenas algumas das pedras preciosas em sua coroa artística.
Além do teatro, seus talentos se estendem a outras mídias, abrangendo desde livros a filmes, demonstrando um domínio incomparável no mundo das artes. Para mim, o contato com o universo dos Satyros sempre representou um espaço de intensa troca e aprendizado, um terreno fértil onde floresci como atriz e criadora. Ao longo do tempo, minha trajetória artística transcendeu os limites das quatro paredes, graças a essa inestimável conexão com o legado de Rodolfo Garcia Vázquez e Ivam Cabral.
A Praça Roosevelt
A Praça Roosevelt, projetada durante a gestão do prefeito José Vicente Faria Lima em 1968 e concluída em 1970, foi inaugurada como um presente do governo à cidade de São Paulo por ocasião do seu 416º aniversário. O Cine Bijou, que abriu suas portas em 1962, tornou-se o epicentro do “cinema de arte” na cidade, atraindo criadores de todas as áreas. Contudo, a partir de meados da década de 1980, a praça começou a degradar-se, tornando-se alvo de novos projetos por parte dos governos subsequentes. Atualmente, a Praça Roosevelt é marcada pela presença de renomados grupos teatrais, como os Parlapatões e o Teatro dos Satyros. Ela já foi inclusive tema de uma peça escrita pela dramaturga alemã Dea Loher, intitulada “A Vida na Praça Roosevelt”. A praça ainda estimula a formação de grupos que batalham por sua preservação como um espaço de lazer e cultura. Recentemente revitalizada, a atual administração tem trabalhado para adaptar a área de modo a acolher as diversas gerações e comunidades que habitam o centro da cidade.
Lembro-me da Praça nos anos 80, quando eu ainda era estudante de Teatro. Era considerada um local perigoso naquela época. Havia um supermercado que, posteriormente, foi desativado. No entanto, graças ao teatro, a Praça passou por um amplo processo de revitalização, tornando-se um polo de cultura e diversão. Hoje, é um espaço onde skatistas praticam seu esporte, moradores e artistas transitam livremente. O que mais aprecio na praça é a vista da Torre da Igreja da Consolação. Parece um cenário digno de um filme de Godard.
É inegável concluir que o Teatro e o público desempenharam um papel crucial na ressurreição da Praça Roosevelt. Transformando a praça de um estado quase ruinoso em um verdadeiro oásis. Um autêntico oásis que ressurgiu das cinzas, ascendendo de um estado quase infernal a um lugar abençoado pelos deuses.
O Artista e sua Arte nas Satyrianas
Nas ruas tumultuadas e palcos improvisados das Satyrianas, um evento anual dedicado à expressão artística livre e diversa, um artista criativo se destaca como uma centelha de originalidade e inovação. Seu nome, que ecoa entre os amantes das artes, é um sinônimo de imaginação desenfreada e talento desbravador.
No coração do evento, entre as multidões de artistas e espectadores, este artista criativo transforma cada esquina, cada espaço vazio em uma tela para sua expressão artística única. Seja através da performance, da música, Teatro, literatura, cinema,ou qualquer outra forma de arte que se proponha a explorar, sua paixão.
Um dos elementos mais impressionantes desse artista nas Satyrianas é sua habilidade de transcender barreiras e criar conexões emocionais com o público. Algo visceral.
A criatividade deste artista não conhece limites, e a sua capacidade de se adaptar e evoluir é verdadeiramente inspiradora. Experimentando e ousando, desafiando as convenções e abrindo novos caminhos para a expressão artística. É uma celebração da liberdade de pensamento e da coragem de desafiar o status quo.
No entanto, por trás de toda essa criatividade selvagem e desenfreada, também reside um profundo comprometimento com a arte e com a mensagem que deseja transmitir. O artista nas Satyrianas não é apenas um criador, mas um contador de histórias, um provocador de reflexões e um catalisador da mudança.
Ah, os encontros dionisíacos! O que mais me encanta nas Satyrianas são os momentos compartilhados com pessoas incríveis, colegas que trilham o caminho da arte ao meu lado. E, claro, os encontros mágicos que permeiam o festival. São tantos aprendizados que parecem verdadeiros presentes dos Deuses.
A celebração vai além da Arte, abraça o teatro, a música, a dança, a performance, a literatura, a dramaturgia, o cinema, mas, acima de tudo, celebra a Arte no Mundo. Em tempos apocalípticos, com tantas tragédias e guerras, vemos crianças, idosos, adultos, todos partindo de maneira injusta, em uma guerra sem vencedores, apenas um banho de sangue em um cenário sombrio.
No entanto, é a Arte que nos mantém esperançosos. Ela continuará a ser o bálsamo da humanidade. Durante minha performance,” Tinta e Despedidas” , ao lado da minha querida amiga, Nalu Liraci, companheira em tantos projetos e irmã de alma, eu segurava um cartaz que dizia: “O mundo acabou!! Escreva uma mensagem para alguém especial em sua vida…”. Um homem , morador de rua, parou, olhou para o cartaz e então questionou: “Moça, se o mundo acabou, por que eu deveria escrever uma mensagem?”
Após refletir sobre nossa breve conversa, acredito que ele quis deixar claro que se sente morto para o mundo, invisível em meio aos artistas e transeuntes da praça. Caminhou lentamente, segurando um pedaço de papelão, e se foi. Isso me fez pensar que se a Arte naquele momento não conseguiu tocar a alma de alguém sem esperança, alguém que se sente adormecido para o Mundo devido a diversas tragédias pessoais, então o trabalho do artista é incessante, como o mito de Sísifo, subindo a montanha com sua pedra, vendo-a cair e retornando para recomeçar.
Esta é a missão da arte: tocar, transformar, transmutar, gerar, causar, acolher, ouvir, existir, resistir, coexistir. Foi justamente em encontros de almas como esse que conheci, neste ano, Teresa Ricco, uma bailarina, coreógrafa e performer. Com sua performance : “Precisas Emoções e quero ir antes “, na praça, com a trilha de, Ave Maria de Charles Gounod. Enquanto dançava e desfiava seus tecidos brancos, havia algo de catártico entre os rasgos e a reconstrução, algo que lembrava Pina Bausch e Marina Abramovich.
Me remeteu a uma frase de Guimarães Rosa: ” A vida é um rasgar-se e remendar-se”….
Eu e Nalu Liraci ficamos hipnotizadas pelo seu trabalho. Ao terminar sua apresentação, fomos abraçá-la e a conversa fluía sem fim. Parecia que nos conhecíamos de um lugar além do tempo e espaço. São almas que se reencontram na Terra para fazer Arte, para fazer Teatro, Dançar, Performar, escrever textos, roteiros, poemas, rir, se abraçar, e simplesmente viver em um mundo cinza, mas que a Arte pode transmutar em algo mais feliz e sereno.
A arte pode sim, trazer esperança, e curar as almas perdidas no limbo que vivemos atualmente, poderemos transmutar tudo isso, acredito.
Sem dúvida, as Satyrianas é um festival abençoado por todos os deuses do teatro. Evoé Dionísio! Evoé Zé!
A Bailarina e performer, Teresa Ricco
Performance : “Precisas Emoções e quero ir antes”
Registros das Satyrianas passadas
Minha Performance ao lado da Nalu Liraci : Tinta e Despedidas
Satyrianas 2023
Imagens das Satyrianas de 2023
Para fechar com chave de ouro, um pouco da exposição : “Zé Celso Através dos tempos” , que aconteceu no saguão da SP Escola de Teatro , durante as Satyrianas de 2023
Fonte: Estúdio Homies