Cresci num território de vozes femininas — duas irmãs de sangue, as amigas delas, as primas, as tias e muitas mulheres que entravam sem bater, ocupavam a sala e faziam do nosso quintal um palco. Embora houvesse quatro irmãos, quem regia a partitura doméstica eram elas. Decidiam o que comer, as tarefas, até o tom da brincadeira. Eram nossas comandantes da ternura.
Nos dias bons, nossa pequena casa de madeira se dilatava em festa. À frente, um jardim onde rosas de todas as cores aprendiam democracia, margaridas ensaiavam alvura e samambaias, quando atingiam seu ápice, eram promovidas à decoração da sala. Ao fundo, uma parreira escrevia primaveras em cachos, enquanto o abacateiro ancião na divisa do quintal e uma laranjeira azeda na porta da cozinha guardavam nossos segredos como sentinelas teimosas. Havia também pés de mexerica, até que, inexplicavelmente, nosso pai decidia podar nossa alegria justamente quando os galhos se carregavam de frutos. Era um gesto misterioso, talvez um pacto secreto com a impermanência. Sim, ele era imprevisível.
No coração desse universo verdejante havia uma escada que não levava a lugar nenhum. Construída para uma porta que dava para a cozinha, já condenada, acabou virando plateia improvisada. Foi ali que assistimos aos grandes espetáculos das minhas irmãs. Irani, a mais vibrante, deixava a voz voar alto. Ivani, já telefonista na companhia da cidade, aparecia menos, mas quando surgia emprestava à cena uma autoridade de diva. Os ensaios aconteciam no quintal, e nós, meninos, sentávamos nos degraus para soprar aplausos.
As paredes do quarto comum, onde seis crianças dividiam sonhos, eram cobertas por cartazes: Alain Delon, Tarcísio Meira, Gigliola Cinquetti, Cláudio Marzo e, reinando absoluta, Wanderléa, a Ternurinha. Ela pairava sobre nós como prima distante, aquela que assinava as revistas e, de vez em quando, respondia às cartas da minha irmã Irani. Hoje sei que um empresário diligente enviava essas fotos autografadas. Ainda assim, cada envelope que chegava pelo correio parecia abrir um rasgo de luz no nosso interior cheinho de sonhos.
Nessa mesma escada de plateia aconteceram minhas primeiras encenações. Eu me travestia com as roupas das meninas, calçava suas botas, improvisava microfones com a escova de cabelo e, de blush e batom rubro, cantava à beira do delírio. Uma noite segui minhas irmãs até a praça do coreto, exibindo o rosto maquiado com o despropósito radiante de quem ignora fronteiras de gênero. Elas quase morreram de vergonha. Eu, de pura alegria.
Também na praça ouvi um diálogo que costurou perplexidade à memória do menininho que eu era. Em tom de brincadeira, Irani e as amigas inventavam nomes improváveis para futuras filhas. “A minha vai se chamar Buceta”, soltou uma. “A minha, Bunda Gostosa”, devolveu outra. Eu, ainda analfabeto nas gramáticas do corpo, saí confuso, mas pressentia. Ali se ensaiava uma rebelião contra todos os “nãos” que aquele tempo despejava sobre as mulheres.
Mais tarde, a velha casa de tábuas tombou. Em seu lugar, ergueu-se uma construção bonita, bancada por Edélcio, marido de Irani. Nada resistiu. Nem o abacateiro, nem a laranjeira azeda, nem a escada-plateia que levava consigo os ecos de cantorias, cartas e travessias infantis. Quando isso aconteceu, eu já era quase rapaz, carregando na pele o perfume das mexericas ausentes e a ousadia herdada daquelas mulheres.
Hoje, quando a agenda me lembra que Wanderléa completa 81 anos, entendo por que essas memórias se emendam nela como fitas de um mesmo vestido. No espelho da Ternurinha, minhas irmãs aprenderam a cintilar em pleno regime de sombras. Cantarem alto, inventarem nomes proibidos, escolherem a cor do batom. Tudo isso era, sem que soubéssemos, uma lição inaugural de liberdade.
Por isso escrevo: feliz aniversário, Wanderléa. Que tua voz, ainda viva nos sulcos de vinil e nas fotografias que chegavam pelo correio, continue ecoando nessa escada que não levava a lugar nenhum e, no entanto, fez de nós — mulheres, homens, meninos travestidos — viajantes de um futuro onde a festa cabe inteira dentro da palavra independência.
Eu li declamando cada palavra que me tocou como se estivesse escrita particularmente pra mim. 🥰 eterna amante de suas ideias ❤️