Então ele voltou. Eu chego no teatro pra fazer “Cabaret Stravaganza” e ele está sentado numa das mesas do café do Satyros, bebendo uma cerveja. Fazia muito tempo que não nos víamos.
– Agora sou um cara sério, responsável, tenho uma filha pra cuidar. – Me revela.
Eu juro que estou emocionado. A última vez que nos falamos foi por telefone. Eu recebo uma ligação a cobrar no meu celular e alguém do outro lado da linha me diz que está preso, sente saudades do Satyros e que se lembrou de mim no dia do Ano Novo.
Vou pro camarim com sua história na cabeça, tentando refazer os caminhos. Me lembro da primeira vez que o vi, há muitos anos, quando apareceu no Satyros com um grupo do Jardim Pantanal para assistir a uma apresentação de “A Filosofia na Alcova”.
Curioso e atento como poucos, em seguida, veio trabalhar com a gente como aprendiz de iluminação. É quando ficamos conhecendo mais de sua história. Aos 18 anos, com várias passagens pela Febem, já havia matado e roubado e escrevia poesias e crônicas. Chegou, inclusive, a me emprestar seu caderno de escritos, todo preenchido com letras miudinhas.
Um tempo depois, acabou se cansando da rotina de aprendiz de iluminação, embora tivesse talento e habilidade. Soube, mais tarde, através de conhecidos, que ele tinha sido preso mais uma vez. Havia matado um policial numa fuga, depois de um assalto.
– Acho que agora acabam com ele. Imagina só, matar um gambé! – Me conta um amigo em comum.
O tempo passa e um dia recebo uma mensagem na minha caixa postal. É ele me pedindo ajuda. Conseguiu sair da prisão e precisa de um trabalho para continuar em liberdade. Eu retorno sua ligação, marcamos um encontro e combinamos, então, que ele viria trabalhar com a gente mais uma vez. Mas ele não aparece e, tempos depois, fico sabendo que ele acabara voltando para a prisão.
É uma quinta-feira, nossa plateia no Satyros Um não está assim tão empolgante e “Cabaret Stravaganza” chega ao final. Então, à minha espera, está o meu amigo. Tem os olhos marejados e fala com emoção:
– Parece que vocês fizeram esta peça para mim. – Fala exatamente das coisas que ando pensando sobre o mundo.
Estou enternecido. Então a gente se senta numa das mesas do café e começa a conversar. Depois de uns tragos, estamos mais relaxados. Vou perguntando muito mais do que falo e, ao passo que a bebida vai fazendo efeito, vamos ficando mais soltos. Pergunto:
– De verdade, sem mentir, quantos você já matou?
– De verdade, nenhum. Quer dizer, de verdade mesmo, se essa pergunta for respondida com o meu coração.
– E de mentira?
– De mentira não existe. De fato, foram seis.
Estou assustado e surpreso. Meu amigo, ali, à minha frente, matou seis pessoas!
– Qual a diferença?
– É que todas às vezes foi pelo coração e isso não é fato. Emoção e razão são coisas diferentes.
Daí ele me conta como foi seu último crime. Na comunidade onde mora, um nóia rouba o botijão de gás de uma senhora de mais de 80 anos. A mulher, inconsolada, é amparada por ele e um grupo de amigos que irão fazer justiça com suas próprias mãos.
Capturam o garoto ladrão e o obrigam a caminhar pela comunidade com o botijão de gás nas costas e, depois de horas, quando o delinquente já não aguenta mais, obrigam-no a devolver o objeto da discórdia à anciã. Depois disso, o celerado é levado pelo bando a um descampado e ele, meu amigo, é quem o executa. Um tiro só, único e certeiro, bem no coração.
No final da conversa, quando já estamos indo embora, meu amigo volta a falar de sua filha acabada de nascer e me pede que lhe dê a oportunidade de trabalhar, mais uma vez, no Satyros.
Voltei agora de uma visita ao Espaço dos Satyros Dois onde meu amigo trabalha na reforma. Antes, porém, combinamos de tomar umas cervejas logo mais, depois de mais uma apresentação do meu espetáculo.