MEMÓRIAS: IVAM CABRAL POR ELE MESMO

Na igreja, comecei como coroinha e cheguei a ser líder da Cruzada Eucarística. E foi neste momento, com 10, 11 anos que descobri o meu amor pelo teatro.

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Somos seis irmãos. Eu sou o de número cinco. Nasci em Ribeirão Claro, interior do Paraná. Meu nome de batismo é Ivam Guilherme porque nasci no dia 25 de junho, dia de São Guilherme. De formação católica rigorosa, não se permitiam, naquela época, batismos em bebês que não tivessem nomes de santos. Assim, o Ivam Cabral do registro civil virou Ivam Guilherme Cabral no batistério.

Ivam com eme é um “erro de cartório”. Deveria ter sido grafado com ene, mas meu pai, totalmente analfabeto, não conseguiu detectar o imprevisto. E meu nome é Ivam por causa de um chefe do meu pai, um engenheiro que era seu chefe na CBPO – Companhia Brasileira de Projetos e Obras, que na época do meu nascimento construía a hidrelétrica de Xavantes, nos anos 1960. Meu pai gostava tanto deste seu chefe que resolveu homenageá-lo.

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Sim, éramos muito pobres. Vivíamos numa pequena casa de madeira amarela com janelas azuis, a 100 metros da igreja matriz. Quando vinha algum temporal, minha mãe colocava toda a família debaixo de uma mesa de madeira que ficava na cozinha. Temia que  a casa desabasse e ali, sob aquela mesa, estaríamos protegidos. Perdi a conta de quantas vezes isso aconteceu, muitas vezes durante a madrugada, quando dormíamos. Acordávamos sempre assustados e rezávamos muito, pedindo a proteção dos Deuses.

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Na igreja, comecei como coroinha e cheguei a ser líder da Cruzada Eucarística. E foi neste momento, com 10, 11 anos que descobri o meu amor pelo teatro. Eu e uns amigos organizamos um grupo de discussão e estudos dramatúrgicos. Foi por esta época que comecei a estudar sobre o teatro brasileiro e descobri a obra de Nelson Rodrigues.

Também neste período comecei a ler muito. Apesar da pobreza e da falta de recursos, a minha mãe tinha fixação por livros. Era comum, naquela época, nos anos 1970, a visita de vendedores de enciclopédia em nossa porta. Minha mãe era sempre uma cliente especial. Comprou a enciclopédia Trópico, alguns volumes da Barsa e muitos romances.

Um destes romances, e o primeiro que eu me lembro de ter lido, foi “O Feijão e o Sonho”, do Orígenes Lessa. Mas devorei também vários livros de contos do Machado de Assis e do José de Alencar. Me interessei por poesia e iniciei, sem nunca ter completado, uma coleção que a Civilização Brasileira publicava, as “Poesias Completas”, da Cecília Meireles.

Se por um lado a minha mãe era apaixonada por livros, por outro, o meu pai adorava música. Nunca deixamos de ter um bom aparelho de som e sempre mais de um rádio em casa. A televisão chegou tarde, quando eu já tinha 10 anos. Assim, nossas noites eram animadas pelos sons que vinham da rádio Graúna, de Porto Alegre; rádio Atalaia, de Curitiba; rádio Nacional, do Rio de Janeiro. Nosso maior divertimento, era ouvir “A Turma da Maré Mansa”, que nos anos 1970 era apresentado pela rádio Globo, do Rio de Janeiro.

O rádio teve uma grande influência na minha vida. Passava sempre muitas horas do meu dia ouvindo rádio e os discos do meu pai, que eram sempre muitos. Seus ídolos na época: Cascatinha e Inhana, Ângela Maria e Vicente Celestino.

E apesar de amar música e viver com um rádio portátil o tempo todo pela casa, meu pai nunca cantou uma música sequer. A única canção que ele balbuciava, quando alguém insistia muito, era “Beijinho Doce”, do Nhô Pai.

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Eu devia ter uns 12 ou 13 anos quando aconteceu a minha estreia no teatro com a peça “A Fada dos Moranguinhos”, com texto e direção de uma de nossas professoras, a dona Maria Luíza Perdão, apresentada na sede Mariana. Na peça, eu fazia parte do coro e interpretava um morango.

O texto contava a história de Rosinha, uma camponesa que, num belo dia, num ato de rebeldia porque não queria fazer seus afazeres domésticos, vai até o campo colher morangos e se depara com uma bruxa malvada que a transformará em uma de suas servas. No final, arrependida, é socorrida pela sua fada madrinha. Na verdade eu fazia parte da figuração e limitava-me a dizer uma única fala, no início da peça quando a rebelde Rosinha se aproxima do morangal:

“Moranguinhos doces
Estejamos acordados
De fato já perceberam
Somos nós os desejados.
Psiu, aí vem ela!”

(…)

…acho que eu comecei a me interessar pela atuação por causa de um de meus irmãos mais velhos, o Dimi. Me lembro de uma apresentação dele cantando, acompanhado da bandinha municipal, na Festa da Amizade, que era realizada anualmente na primavera. Ele cantou “Meu Benzinho”, um sucesso da Waldirene, uma das musas da Jovem Guarda. E estava tão lindo!

“Meu benzinho
Oh, meu benzinho
Eu quero sempre estar
Com você bem juntinho
O seu olhar para mim
É um mundo cheio de carinho…”

E eu nunca mais esqueci aquele momento. Eu era muito pequeno, devia ter uns quatro ou cinco anos. Mas o orgulho que eu senti ao vê-lo ali, naquele palco improvisado, cantando e dançando como profissional.

O Dimi desistiu de sua carreira depois desta apresentação. Não segurou a onda dos amigos da escola que o chamavam de “pó-de-arroz”, “mariquinha” e estas coisas que eu acabei ouvindo também quando comecei a colocar minhas asinhas de fora, na Cruzada Eucarística.

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Outro fato importante que aconteceu na minha infância é que eu arrumei trabalho como sonoplasta na igreja matriz. Tinha a madrinha Maria Miguel que era a responsável pela limpeza da igreja e era ela quem adornava o altar e enfeitava o lugar para os casamentos. E, com uma vitrolinha Phillips, que era de sua filha, negociava a sonoplastia daquelas bodas.

(…)

Aos 17 anos entrei na universidade, na mesma época em que fui servir ao Exército, onde cheguei a ser cabo. Sem muita opção, ainda morando no interior, escolhi cursar Administração de Empresas em Ourinhos, cidade a 40 quilômetros de Ribeirão Claro. Nesta época eu trabalhava num escritório de contabilidade e o meu salário custeava a minha faculdade.

Aos 18 estava vivendo em Curitiba. Morávamos eu e o Dimi em uma república com mais cinco conterrâneos. Havia transferido a minha faculdade para lá e nessa época a minha vida se resumia ao curso de Administração de Empresas e ao trabalho burocrático numa grande empresa.

Aos 20 eu realizei um sonho que foi o de morar sozinho. Fui viver num apartamento muito próximo ao Teatro Guaíra. Nesta mesma época comecei a trabalhar na Corretora de Valores do Banco do Estado do Paraná, onde atuava no mercado financeiro. Entendia tudo de ações, bonificações e dividendos e cheguei a operar na Bolsa de Valores do Paraná.

E foi nessa época que comecei a frequentar bastante teatro. O primeiro grande espetáculo que eu vi foi “À Moda da Casa”, de Flávio Márcio, com a Yara Amaral (que também assinava a direção) e Henriqueta Brieba no elenco. A partir deste dia, nunca mais fui o mesmo. Saí do teatro decidido a perseguir o meu sonho no teatro. Mas por onde começar?

Um dia eu estava indo embora do meu trabalho e passei em frente ao Teatro Guaíra. Uma placa em branco e amarelo anunciava: “O que vale é o talento”. Havia as máscaras da tragédia e da comédia e mais embaixo lia-se: “abertas as inscrições para a primeira turma do Curso Superior de Artes Cênicas”. Eu estava em crise, na faculdade de Administração de Empresas eu acumulava várias dependências.

Fazia muito calor e eu me sentei em um banco em frente ao Teatro Guaíra, na Praça Santos Andrade, lendo e relendo dezenas e dezenas de vezes aquele anúncio, e fiquei imaginando o que seria dar um salto no escuro na minha vida: abandonar o curso de Administração de Empresas, pedir a conta no meu trabalho e me aventurar num mundo onde tudo para mim seria novidade.

Parte do sonho eu realizaria no ano seguinte, quando,  depois de ter passado no vestibular, me matriculei no curso de Artes Cênicas, num convênio entre o Teatro Guaíra e a PUC/PR. A partir daí a minha vida sofreria uma grande transformação.

Foram mágicos aqueles primeiros anos no teatro. Descobri um mundo inimaginável, completamente diferente do que tinha idealizado. E o encontro com mestres como Hugo Mengarelli, Lilian Fleury Dória e Ivanise Garcia foram fundamentais na minha formação.

Também foi um período onde vi muito teatro. E estava cada vez mais apaixonado por este meu novo ofício. Mas um espetáculo marcaria definitivamente este meu momento: “O Despertar da Primavera”, com o Boi Voador. O grupo chegou em Curitiba e nós, do curso de teatro, hospedamos os atores em nossas casas e tivemos o privilégio de acompanhar os ensaios que o elenco fazia no palco do Guairinha.

O Ulysses Cruz, que dirigia aquele trabalho, foi o espelho fundamental para que eu quisesse empreender o caminho que acabei seguindo: o do teatro de grupo. Porque houve uma identificação muito grande, não exatamente com a linguagem do Boi Voador, mas com a forma com que eles viam e viviam o teatro.

Nesta altura comecei a escrever para teatro. Meu primeiro texto, “Qualquer Semelhança é Mera Coincidência”, escrito em 1985, estreou no ano seguinte, no Teatro Guaíra, com direção de Izabella Zanchi, e com um elenco formado por colegas da faculdade.

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Mas no final de 1988, quando enfim concluia o curso de Artes Cênicas, eu tinha um só desejo: ser fundamental para o teatro. Me lembro dos meus colegas que se preparavam para ir para o Rio de Janeiro, investir em trabalhos na tevê. E o meu sonho era completamente outro: queria estruturar um grupo, fazer história, viajar pelo mundo. E São Paulo me parecia um destino ideal.

No dia 13 de fevereiro de 1989, uma segunda-feira, num ônibus da viação Garcia que saiu de Curitiba às 13h, eu cheguei em São Paulo e encontrei uma cidade chorosa pela garoa fina que caia, insistente. Era a terceira ou quarta vez que vinha para São Paulo, e o único contato real que eu tinha na cidade era com o Márcio Ribeiro, o Marcinho, um amigo querido que eu tinha conhecido em Curitiba e que vivia na Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte. Fiquei na casa dele por uns dias, provisoriamente.

Dias depois já estava instalado numa pensão na Liberdade e fui à Escola de Comunicações e Arte, da USP, obter informações sobre cursos de pós-graduação. Encontrei um anúncio que buscava atores. No dia 24 de fevereiro, aniversário do meu irmão Cláudio, eu estava na rua Rui Barbosa, respondendo ao tal anúncio. Conheci o Rodolfo García Vázquez neste dia, uma sexta-feira.

No dia 27 de fevereiro deste mesmo 1989, véspera do aniversário do meu irmão Dimi, uma segunda-feira, eu recebi uma ligação dizendo que às 19h começariam os ensaios de “Um Qorpo Santo” e eu seria dirigido pelo Rodolfo.

Fonte: “Cia. de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral”, de Alberto Guzik, Coleção Aplauso, Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo, 2006

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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