Para falar de “Hello, Édipo (Panótico Foucault”, peça da Companhia Veneno do Teatro que revisita o mito grego de Édipo, gostaria de destacar um tema que considero importante no espetáculo: a encruzilhada.
Antes de abordarmos Freud (1856–1939), criador do conceito de Complexo de Édipo, gostaria de começar falando sobre Jacques Lacan (1901–1981), que, em 1955, proferiu o seminário “A Carta Roubada”. A minha proposta, então, é olhar um pouco para esse trabalho e, a partir dele, considerar uma possível desconstrução do conceito freudiano. Ou pelo menos da maneira que o entendíamos até agora. Fixo, entre as fases fálica e o período de latência, conforme definiu Freud.
Vou tentar deixar mais evidente ao longo da minha fala, mas busquei em Lacan a ideia de repetição, imaginando que uma encruzilhada não vai aparecer uma, mas muitas vezes em nossas vidas. E por isso começo com uma pequena reflexão sobre esse seminário, “A Carta Roubada”.
Embora Lacan não aborde o Complexo de Édipo de forma direta neste trabalho, eu penso que esta questão está implicada, ali, de modo sutil. A ideia de que o sujeito está inserido em uma rede de significantes, governada pela lei simbólica, remete à importância da figura paterna e da lei no Complexo de Édipo.
Eu penso, também, que Lacan nos convida a refletir o Complexo de Édipo como algo enraizado nas relações do sujeito com a linguagem e o simbólico. Isso se torna especialmente relevante quando ele introduz as ideias de “corte” e “decisão”, ligadas ao desenvolvimento subjetivo e ao processo de estruturação psíquica, especialmente no campo da linguagem e do desejo, surgindo em momentos cruciais da vida – o que pode ser relacionado ao tema da encruzilhada, que escolhi para desenvolver algumas ideias.
O conceito de “corte” em Lacan está associado à ideia de uma ruptura ou separação essencial na constituição do sujeito. Essa noção é particularmente importante no contexto da entrada do sujeito no campo da linguagem, que Lacan chama de “ordem simbólica”. O corte é um momento de ruptura que institui a diferença e a falta, algo crucial para o funcionamento do desejo.
Para Lacan, o sujeito é constituído no e pelo simbólico, e a linguagem é o que permite essa constituição. Quando a criança entra na linguagem, ela sofre um “corte” que a separa da completude imaginária com a mãe. Esse corte é a condição necessária para o desejo, pois é a falta instaurada por ele que mobiliza o desejo em nós.
A “decisão”, por sua vez, está conectada ao ato de escolha do sujeito em relação à sua posição no simbólico. O sujeito se confronta com as opções impostas pela estrutura simbólica e, nesse sentido, carrega uma responsabilidade subjetiva. Ao se submeter à lei do Pai – que é, em linhas gerais, o momento de nossas entradas na cultura e na linguagem, no instante em que aparece o Complexo de Édipo – o sujeito aceita um corte simbólico, renunciando ao desejo incestuoso de ser o objeto completo da mãe. Esse corte impõe limites que estruturam o desejo.
Lacan sugere que o sujeito, mesmo confrontado com uma estrutura simbólica que o precede, tem momentos de decisão fundamentais que moldam sua posição frente ao desejo e à lei. Esse ato de decisão implica uma aceitação (ou não) do corte que já foi imposto simbolicamente. Aqui, a decisão do sujeito em relação à castração simbólica é crucial.
A decisão também pode ser vista como o ato de responder ao desejo do Outro (o grande Outro, que é o conjunto de significantes e leis da cultura, a instância simbólica que está fora do sujeito e funciona como a referência última para a linguagem, a lei, e o desejo). Então, o sujeito toma uma posição ativa ou passiva frente ao desejo do Outro, o que define sua trajetória subjetiva.
Estes conceitos, “corte” e “decisão”, estão profundamente enraizados no processo edípico. O “corte” é a separação imposta pela lei simbólica, que organiza o desejo, e a “decisão” é a resposta do sujeito frente a essa lei. Essas ideias se conectam diretamente ao tema da encruzilhada, pois refletem os momentos cruciais onde o sujeito se encontra em uma bifurcação psíquica, tendo que escolher um caminho que definirá sua relação com o desejo, a lei e a falta.
Essas ideias são essenciais para entender a construção da subjetividade lacaniana, onde o sujeito não é totalmente autônomo, mas está sempre respondendo à estrutura simbólica que vem antes dele e que lhe impõe cortes e decisões fundamentais para sua constituição.
Para Lacan, esses momentos decisivos não se restringem à esfera consciente, mas envolvem também o campo do inconsciente, que molda a trajetória do sujeito. Ele utiliza a análise do conto “A Carta Roubada” (The Purloined Letter), de Edgar Allan Poe (1809–1849), para ilustrar conceitos importantes da psicanálise, especialmente relacionados à linguagem, ao simbólico e à estrutura do inconsciente.
E, afinal, o que diz, do que se trata esse conto A Carta Roubada?
A história de Poe gira em torno de uma carta comprometedora que é roubada e, em seguida, escondida à vista de todos. O enredo segue a investigação para recuperá-la, explorando como a carta circula entre personagens poderosos, até ser finalmente encontrada pelo detetive Dupin, que consegue resolver o caso por compreender a lógica da ocultação.
Lacan usa essa narrativa para desenvolver suas ideias sobre a primazia do simbólico sobre o imaginário e o real. Argumenta que o conteúdo da carta em si não importa; o que é significativo é o lugar que ela ocupa na cadeia simbólica de relações entre as personagens.
A carta, nesse sentido, funciona como um significante que afeta o destino de todos, independentemente de seu conteúdo literal. Ela simboliza algo perdido e ao mesmo tempo algo essencial para a estrutura social e psíquica das personagens.
Importante abrir um espaço para falar que, para Lacan, o significante é uma unidade fundamental de linguagem que não tem um significado fixo por si só, mas adquire sentido ao se relacionar com outros significantes. Ele é diferente do “significado”, que seria o conceito ou ideia associado a uma palavra. O significante é como uma peça de um quebra-cabeça: só faz sentido dentro de uma cadeia de significantes, organizando e estruturando o inconsciente.
Um exemplo didático: Em uma frase, as palavras (significantes) sozinhas não têm um sentido completo, mas, quando conectadas, criam o significado. O inconsciente funciona da mesma forma, organizado por uma rede de significantes que moldam nossos desejos e pensamentos, mesmo sem nossa consciência.
Assim, a carta em si está no domínio do simbólico – ela é um objeto de valor não pelo que contém, mas pela posição que ocupa na trama das relações sociais. Lacan destaca como o simbólico (as regras, os significantes) estrutura a realidade das personagens, mais do que o próprio real ou imaginário.
Lacan observa como a carta circula de mão em mão, e como essa circulação determina a trama. Para ele, isso exemplifica a forma como os significantes funcionam na linguagem e na psique humana: eles circulam e têm efeitos, mesmo que seu conteúdo não seja conhecido ou totalmente compreendido. O significante é o que “faz” o sujeito, e não o contrário.
A dinâmica da carta roubada revela também os desejos inconscientes das personagens. Lacan usa o exemplo para ilustrar como o desejo está sempre em relação à falta e à lei (a lei simbólica), e como a busca pelo objeto (a carta) é também uma busca por algo que, na verdade, não pode ser plenamente possuído ou compreendido.
Um dos pontos mais importantes do seminário é a ideia de que o sujeito é “falado” pelo simbólico; isto é, o sujeito não tem controle total sobre suas ações, pois está sempre inserido em uma rede de significantes que o precede. Lacan afirma que o sujeito é determinado pela linguagem e pelo desejo que emerge do campo do Outro, a instância simbólica.
Neste seminário “A Carta Roubada”, Lacan utiliza o conto de Poe como uma metáfora para explicar como os processos inconscientes e a estrutura simbólica influenciam nossas ações e interações, enfatizando que somos, em grande parte, regidos por esses significantes invisíveis, que circulam e moldam nosso desejo, sem que tenhamos total consciência ou controle sobre eles.
Para Lacan, o Complexo de Édipo não é apenas uma questão de desejo e repressão sexual, mas um momento crucial de inserção do sujeito no campo do simbólico, onde o sujeito é dividido e marcado pelo significante da lei.
Deste modo, Lacan poderia ter repensado o conceito freudiano do Complexo de Édipo ao enfatizar que ele é uma estrutura simbólica, regida pela linguagem e pelos significantes, e não apenas uma questão de desejos individuais ou relações interpessoais.
No Complexo de Édipo, a criança aprende a ocupar um lugar na rede simbólica de significantes ao reconhecer a Lei do Pai, que proíbe o desejo incestuoso. Essa lei funciona como um significante fundamental, semelhante ao papel que a carta roubada desempenha na narrativa de Poe: ela circula, determina posições e exerce efeitos sobre os sujeitos, independentemente de seu conteúdo manifesto.
Assim como a carta em Poe, o Complexo de Édipo pode ser visto como um significante que organiza a subjetividade. No seminário, Lacan mostra como o valor da carta não reside em seu conteúdo, mas em seu lugar dentro da estrutura de relações. Da mesma forma, no Complexo de Édipo, o sujeito não precisa necessariamente saber ou estar consciente de seus desejos edipianos; o que importa é a posição que ele ocupa em relação ao Pai (que é a Lei) e ao desejo. A carta, assim como o Édipo, é um significante que circula e regula as dinâmicas inconscientes.
No Complexo de Édipo, a lei simbólica, representada pelo Pai, intervém para, de certo modo, regular o desejo incestuoso. Neste seminário “A Carta Roubada”, Lacan explora como o desejo das personagens é moldado pelo lugar que ocupam em relação à carta, que simboliza a falta e o desejo. A dinâmica da “lei”, a autoridade do pai no Édipo, e do “desejo”, o desejo incestuoso pela mãe, no Complexo de Édipo pode ser vista como paralela à maneira como a carta circula na narrativa: o desejo das personagens é sempre guiado pela falta da carta e pelo que ela representa, assim como o desejo do sujeito é estruturado pela falta imposta pela lei edipiana.
Uma das consequências do Complexo de Édipo, segundo Lacan, é a divisão do sujeito. O sujeito se inscreve na linguagem e na lei, e seu desejo é moldado pela falta e pela proibição.
Ainda neste seminário, Lacan ilustra como as personagens são “faladas” pela carta, ou seja, suas ações e destinos são determinados pela circulação desse objeto simbólico. No Complexo de Édipo, da mesma forma, o sujeito é “falado” pela lei simbólica, pela proibição do incesto e pela divisão que resulta da inscrição no campo do desejo.
No Complexo de Édipo, o sujeito é estruturado pela falta imposta pela Lei do Pai, da mesma forma que, na narrativa da carta roubada, os sujeitos são estruturados pela ausência ou presença da carta. Lacan usa a história de Poe para ilustrar como o inconsciente é estruturado como uma linguagem, e o Complexo de Édipo é um dos mecanismos centrais dessa estruturação, moldando o sujeito ao inscrevê-lo no campo simbólico.
Voltando à origem do Complexo de Édipo
Bem, sabemos que O Complexo de Édipo é um conceito central na psicanálise, desenvolvido por Freud a partir da obra “A Interpretação dos Sonhos” (Die Traumdeutung), publicada em 1899, com data de 1900. Neste trabalho, Freud aborda de maneira mais evidente e explícita a relação entre a sexualidade infantil e o desenvolvimento psíquico. Em linhas gerais, o Complexo de Édipo refere-se à fase do desenvolvimento psicossexual em que as crianças, por volta dos 3 a 6 anos (fase fálica), desenvolvem um desejo inconsciente pelos progenitores do sexo oposto e sentimentos de rivalidade com os progenitores do mesmo sexo.
No caso do menino, há uma atração pela mãe e uma rivalidade com o pai, o que também se dá de forma análoga para meninas, com desejo pelo pai e rivalidade com a mãe. Freud associou esse processo ao mito de Édipo, em que o herói grego, sem saber, mata o pai e casa-se com a mãe.
Esse período, muitas vezes, culmina em um sentimento de medo, como o temor da castração no menino, o que leva à resolução do complexo pela identificação com o progenitor do mesmo sexo e à internalização das normas sociais e de gênero. Essa identificação com o pai, no caso dos meninos, é o que permite à criança superar o desejo incestuoso e aceitar o papel do pai como figura de autoridade.
Aqui, porém, eu gostaria de me concentrar na “metáfora da encruzilhada”, o momento exato em que Édipo se depara com Laio e o destino começa a se cumprir. No mito grego, Édipo, sem saber que Laio é seu pai, encontra-se com ele em uma encruzilhada, e, após uma disputa sobre quem deveria passar primeiro, Édipo o mata, desencadeando assim a tragédia que havia sido profetizada.
Nesta “metáfora da encruzilhada”, podemos entender que é o momento em que a criança está diante de um dilema, uma decisão simbólica entre “matar” ou “morrer”; seguir o caminho do desejo incestuoso ou aceitar a autoridade do pai e as regras da sociedade.
É uma prova de vida, onde a escolha de um caminho implica, necessariamente, a renúncia ao outro. Como no mito de Édipo, esse é um momento definidor, onde a identidade da criança começa a se formar mais solidamente, com base nas escolhas, conscientes e inconscientes, que faz nesse momento crucial.
A “metáfora da encruzilhada” no contexto do Complexo de Édipo pode ser expandida de maneira ampla, contemplando mais nuances além da dicotomia simples de “matar ou morrer”. Ao pensarmos na encruzilhada como um espaço simbólico de múltiplas escolhas e consequências, ampliamos o entendimento sobre as possibilidades e os desdobramentos psíquicos que ocorrem nesse momento crucial da vida.
A encruzilhada: uma multiplicidade de caminhos ou Como sobreviver sem sequelas
Na encruzilhada, como no mito de Édipo, a criança se depara com opções que podem ser percebidas como absolutos — “matar” o desejo incestuoso ou “morrer” ao submeter-se à autoridade do pai e à lei simbólica.
No entanto, em termos psíquicos, uma encruzilhada oferece muito mais do que apenas duas escolhas. Existem múltiplas possibilidades além de uma simples opção entre “isto ou aquilo”. Cada decisão traz consigo ramificações e consequências próprias, que se desdobram de maneira complexa na vida psíquica e emocional.
Nesse ponto, não se trata apenas de uma escolha entre duas opções – não é apenas um ou outro. São muitas forças em jogo ao mesmo tempo: o acaso, a vontade humana, as profecias, os conflitos internos. O que ocorre ali não é simples ou linear; há uma confluência de múltiplas possibilidades que coexistem, transformando aquele momento em algo muito mais complexo do que uma decisão binária.
Se pensamos no cenário em que a criança não “mata” o pai – ou seja, não supera totalmente o complexo –, ela pode continuar carregando os resquícios desse conflito não resolvido. Essa escolha ou incapacidade de resolvê-lo plenamente pode resultar em uma vida psíquica com “sequelas” emocionais. O sujeito sobreviverá, mas talvez de forma enferma, carregando culpas inconscientes, ansiedades ou dificuldades nas relações com figuras de autoridade ou em seus próprios relacionamentos amorosos futuros.
Essas “sequelas” podem se manifestar de diversas maneiras, como neuroses, repetição de padrões ou submissão ao desejo do outro, por exemplo. As neuroses surgem quando desejos e conflitos não resolvidos resultam em sintomas como fobias, obsessões ou ansiedades, que limitam a liberdade psíquica do sujeito. Já a repetição de padrões ocorre quando a pessoa, inconscientemente, revive o mesmo conflito edipiano em relacionamentos amorosos futuros, tentando recriar o triângulo edipiano sem nunca resolver completamente o dilema. Por fim, a submissão ao desejo do outro acontece quando, ao não conseguir “matar” o desejo incestuoso, o sujeito se entrega completamente ao desejo do Outro, vivendo uma vida marcada pela falta de autonomia, sempre sob a sombra de figuras parentais ou de autoridade.
Por outro lado, mesmo o ato de “matar” o pai, no sentido de resolver o complexo edipiano, não é sem suas próprias consequências. “Matar” pode significar a internalização das normas e da autoridade, o que é necessário para o desenvolvimento social e psicológico saudável, mas também pode ter um preço.
No excesso de rigidez, a internalização da lei pode gerar uma superidentificação com o pai e a autoridade, levando a um sujeito excessivamente rígido, que reprime seu desejo em favor da ordem e da lei.
Mas pode aparecer também a culpabilidade. Mesmo superando o desejo incestuoso, o sujeito pode carregar uma culpa inconsciente por “trair” seu desejo original e submeter-se às normas, gerando um conflito interno entre seu desejo individual e o desejo socialmente aceito.
E há também a relação conflituosa com o prazer. Neste caso, a renúncia ao prazer incestuoso pode se manifestar em dificuldades de usufruir o prazer em suas várias formas, desde os relacionamentos até as atividades criativas e profissionais. A vida pode se tornar uma luta entre o desejo e a culpa, uma busca por permissão para desejar.
As inúmeras encruzilhadas da vida
Essa metáfora pode ser aplicada à várias fases da vida. A cada novo desafio ou dilema, encontramos novas “encruzilhadas” com diferentes opções e suas respectivas consequências.
Não é apenas uma escolha única, mas um processo contínuo. Podemos decidir não “matar” de imediato, carregar nossas feridas e enfrentá-las novamente mais tarde, talvez com mais experiência ou sabedoria. Ou, por outro lado, podemos “matar” de forma prematura e viver com uma sensação de perda, buscando sempre um retorno ao momento anterior.
Cada caminho na encruzilhada leva a novos desdobramentos, e o que faz com que um sujeito se torne mais ou menos “saudável” em seu desenvolvimento é a maneira como lida com essas escolhas e suas consequências.
A “enfermidade” ou a “saúde” psíquica resultantes desse momento inicial não são estáticas, mas sim processos contínuos, sempre sujeitos à possibilidade de novos encontros com encruzilhadas ao longo da vida.
Essa visão de múltiplos caminhos e desdobramentos nos afasta da ideia de uma escolha binária. O Complexo de Édipo deixa de ser apenas sobre “matar ou morrer”, mas sim sobre a capacidade de navegar pelas consequências dessas decisões, de negociar com os desejos inconscientes, e de, possivelmente, revisitar essas escolhas em diferentes momentos da vida.
Mas a encruzilhada é, também, o lugar de definição dos caminhos. A “metáfora da encruzilhada”, portanto, traz uma profundidade simbólica que pode ser aplicada não apenas ao Complexo de Édipo, mas também à vida como um todo, representando momentos críticos de decisão. A encruzilhada é o espaço simbólico onde todas as direções estão abertas, mas ao mesmo tempo, escolher um caminho significa, necessariamente, deixar os outros para trás. Isso a torna um lugar de definição, onde se traça o destino com base nas escolhas que se fazem.
Mas podemos pensar também que a encruzilhada pode existir como símbolo de escolha. Nela, o sujeito é forçado a tomar uma decisão, e essa escolha muitas vezes carrega uma qualidade irreversível. Diferentemente de uma estrada linear, onde o caminho é único e contínuo, a encruzilhada oferece opções distintas e contraditórias. A partir do momento em que se escolhe um caminho, os outros se tornam, em certo sentido, inacessíveis. Aqui, o indivíduo é confrontado com o dilema da perda potencial: ao optar por uma direção, há uma renúncia implícita das outras possibilidades.
Essa escolha não é apenas prática. Antes, é carregada de significado emocional e psíquico. Cada caminho pode representar um desejo, uma identificação, ou uma versão de quem o sujeito quer, ou teme, ser. Freud nos mostra que, no Complexo de Édipo, ao “matar” o desejo incestuoso e se identificar com a figura do pai, a criança não apenas resolve uma fase, mas também se abre para as demandas da cultura e da civilização. No entanto, isso não é sem custo. O caminho tomado implica, também, uma renúncia a outros desejos.
Significa, também, que uma encruzilhada pode definir a multiplicidade de destinos porque quando expandimos essa metáfora para a vida em geral, podemos entender que as encruzilhadas não aparecem apenas uma vez, mas repetidamente, em diferentes formas e contextos. Cada escolha nos coloca em um trajeto, mas a vida nos apresenta novas encruzilhadas ao longo do caminho. Aqui reside a profundidade do símbolo. Porque, afinal, a encruzilhada nunca é final. As escolhas que fazemos nos moldam, nos definem, mas elas também nos encaminham para novas encruzilhadas, onde novos caminhos serão traçados.
Então é importante pensarmos que toda escolha traz as suas consequências. Porque um dos aspectos mais ricos da “metáfora da encruzilhada” é que ela carrega consigo a ideia de que cada escolha tem suas consequências, muitas vezes imprevisíveis. Ao escolher “matar” ou “morrer” em termos edipianos, o sujeito decide não apenas sobre a resolução daquele conflito, mas também sobre a forma como viverá com essa resolução ao longo da vida. Ao se decidir por uma das opções, não se escapa completamente das outras. Estas escolhas continuarão a nos assombrar, como fantasmas psíquicos.
Por exemplo, ao escolher um caminho que “mata” um desejo, pode-se seguir uma vida de conformidade, mas ao preço de uma repressão que pode vir à tona como sintomas neuróticos ou outros conflitos emocionais.
Ao não “matar” e tentar manter vivo um desejo impossível, o sujeito pode se ver preso em fantasias ou dinâmicas repetitivas, incapaz de seguir adiante com sua vida.
No entanto, a encruzilhada não é apenas um lugar de perda ou limitação, mas um espaço de potencial. Ao escolher um caminho, o sujeito cria um novo destino, traça uma nova jornada. A encruzilhada é, assim, o espaço onde a autonomia e a criatividade podem se manifestar. Em termos psicanalíticos, a maneira como o sujeito resolve o conflito edipiano define não apenas suas limitações, mas também suas possibilidades.
Esse momento de escolha é o que define a singularidade do sujeito, a forma como cada um lida com seus desejos, fantasias e identificações. Dois indivíduos podem enfrentar a mesma encruzilhada, mas escolher caminhos completamente diferentes, traçando trajetórias únicas. Assim, a encruzilhada é o símbolo do destino pessoal, um lugar onde a identidade se define e se transforma.
Podemos, ainda, pensar na encruzilhada como uma metáfora da condição humana. Estamos sempre em situações de escolha, conscientes ou inconscientes, e essas escolhas são carregadas de significados profundos. Decidir entre um caminho e outro é, em última análise, decidir entre versões de nós mesmos, entre futuros possíveis e passados a serem deixados para trás. A vida, então, se constrói a partir das encruzilhadas que cruzamos, das decisões que tomamos, e das que não tomamos; das estradas que deixamos inexploradas.
Na peça da Cia. Veneno do Teatro, o cruzamento de caminhos é literal e simbólico. Édipo, em sua jornada, encontra uma encruzilhada real, onde mata seu pai, sem saber quem ele é, e escolhe um caminho que o levará ao destino trágico. A encruzilhada é, portanto, não apenas um lugar de decisão, mas o ponto de partida para todo um desenrolar trágico. Essa tragédia pode ser vista como uma representação da condição humana: a incapacidade de ver todas as consequências possíveis de nossas escolhas, mas a certeza de que elas irão definir nossa trajetória.
Outro ponto interessante na metáfora da encruzilhada é que, mesmo depois de escolher um caminho, o sujeito pode ser constantemente tentado a revisitar a encruzilhada. Isso ocorre, por exemplo, quando repetimos padrões de comportamento ou relacionamentos que nos levam de volta ao conflito original. Psicanaliticamente, isso pode ser visto como a compulsão à repetição, uma tendência do inconsciente de retornar ao conflito não resolvido na esperança de, talvez, resolvê-lo de maneira diferente.
Na vida, frequentemente nos encontramos de volta a encruzilhadas semelhantes, repetindo dilemas com novas personagens ou novos cenários. Isso sugere que, embora as escolhas feitas em um dado momento nos definam, elas não nos condenam de forma definitiva. Sempre há novas oportunidades para revisar, reavaliar e, em última análise, transformar o caminho escolhido.
A encruzilhada como confluência de múltiplas forças
Aplicadas às ideias de Lacan poderíamos dizer que a encruzilhada representa o significado, uma metáfora para o momento de escolha ou dilema que traz múltiplas possibilidades. Ao somar nossas decisões a essa encruzilhada, essas escolhas passam a ser os significantes, ou seja, são as ações concretas que atribuem sentido ao significado subjacente, moldando a forma como ele se manifesta em sua vida psíquica e emocional.
Essa leitura coloca a encruzilhada como um campo potencial de sentidos, enquanto as decisões atuam como signos que concretizam e dão forma à experiência.
Assim, o simbolismo da encruzilhada representa um emblema poderoso da complexidade e ambivalência da experiência humana. Ela não simboliza apenas um ponto de decisão, mas também a confluência de múltiplas forças — conscientes e inconscientes — que moldam e influenciam o sujeito.
Em Lacan, esses momentos de escolha representam mais do que simples opções racionais; são oportunidades em que o desejo, o inconsciente e a linguagem se entrelaçam para moldar a subjetividade. A encruzilhada expressa a incerteza e a pluralidade de possibilidades que coexistem a cada instante, refletindo o caráter fragmentado do eu, sempre em transformação.
Neste espaço, o sujeito não apenas escolhe um caminho, mas se transforma, recriando sua identidade a partir do que renuncia e do que abraça. Assim, a encruzilhada, em sua relação com os conceitos de “corte” e “decisão” de Lacan, é uma metáfora para a contínua construção do sujeito, onde cada escolha é ao mesmo tempo uma perda e uma abertura, um fechamento e uma renovação. Nela, nos tornamos protagonistas de nossas próprias histórias, atravessados por dilemas, desejos e pelo simbólico, sempre num processo de autoformação que nunca se esgota.
Para finalizar, gostaria de voltar a “Hello, Édipo”, a peça da Cia. Veneno do Teatro. Que belo espetáculo assistimos! Saí do teatro tocado, intrigado e reflexivo. Ao término da apresentação, fiquei pensando no motivo pelo qual a ideia de ‘encruzilhada’ continuava a reverberar em minha mente. Curiosamente, essa questão nunca havia sido central para mim antes.
Ao longo da vida, assisti a várias versões de Édipo. Inclusive, em 2014, no Satyros, apresentamos nossa própria interpretação do mito, intitulada “Édipo na Praça.” Nessa montagem, transpusemos Tebas para a Praça Roosevelt, em diálogo direto com as manifestações políticas que tomavam conta do país naquele momento.
Então concluí: “Hello, Édipo” estava me oferecendo uma nova perspectiva sobre o Complexo de Édipo. Não mais a ideia de um destino inevitável, único e absoluto.
Além da metalinguagem — a peça dentro de outra peça —, percebi nesse grupo uma tentativa de revisitar o mito de Édipo para além das relações de poder. Afinal, o poder deixou de ter uma única medida. Aprendemos com Milton Santos, apenas para citar um exemplo, que a geografia pode ser reavaliada e que devemos expandir nossas fronteiras em busca de um espaço mais solidário. Hoje vivemos em tempos em que o poder pode ser ressignificado e reabilitado. As periferias exemplificam isso claramente.
Não por acaso, penso, “Hello, Édipo” foi apresentada primeiro na periferia da cidade, em um processo aberto, antes de ocupar uma sala no centro, no coração da metrópole. E não em qualquer lugar: a Praça Roosevelt é, sem dúvida, a verdadeira ágora de São Paulo, a maior e mais significativa encruzilhada da cidade. Sob ela, encontram-se os cruzamentos que conectam as várias zonas da cidade: norte-sul, leste-oeste.
Curiosamente, no texto de “Hello, Édipo”, a palavra ‘cruzamento’ aparece apenas uma vez, logo no início, na página 2. Entretanto, para reforçar minha impressão, a palavra ‘encruzilhada’ surge nove vezes, enquanto ‘caminho’ é mencionada duas vezes. Já ‘destino’, que parece ser o regulador dessas encruzilhadas — e talvez o centro da discussão —, aparece apenas duas vezes.
Essa constatação me trouxe alívio. A partir dela, entendi que, sim, nossos destinos, daqui em diante, serão regulados nas encruzilhadas, onde, com as várias possibilidades de livre-arbítrio, poderemos escolher entre aceitá-los ou recusá-los.