Hoje é sábado e estou na SP Escola de Teatro. O sol mal nasceu e já há corpos, vozes, gestos em cena. Microcenas, como chamamos. São pequenas janelas por onde os estudantes de direção deixam o mundo respirar. Observo. E me reconheço. Há mais de quinze anos minha biografia se mistura com a da escola. Já não sei onde termina o homem e começa o ofício. Onde começa o ofício e termina a vida.
Trabalhei a semana inteira. Dias longos e noites também, como as da segunda, uma reunião com parte dos coordenadores da escola, dessas em que se fala com o corpo inteiro, que se estendeu até quase dez da noite. Na quarta, o jantar de despedida do indiano Rustom Bharucha, que nos trouxe a lucidez da decolonialidade e o espanto da escuta.
Quase sem pausa porque terminei a semana passada trabalhando. No sábado, havia acontecido o lançamento do livro de Sergio Zlotnic. Eu e minha querida Isildinha Baptista Nogueira – presidente do conselho de administração da Adaap, que gere a nossa escola – passamos a tarde recepcionando os convidados que compareceram na nossa sede. Aliás, com Isildinha falo todos os dias. E, não raro, tarde da noite. Nossa amiga tem um ritmo que ultrapassa o meu. Não é pouca coisa, não.
Mas tudo isso, confesso, já se tornou parte da respiração. Trabalhar é minha maneira de existir. Não trabalho para viver, mas como que se alimenta dele. E encontra nisso a mais pura alegria. Enquanto Os Satyros embarcam para Cuba, fico aqui, guardião do nosso destino, torcendo para que tudo corra bem. Me sinto ainda mais ligado à terra, àquilo que resiste quando tudo parece ameaçado por furacões. Reais ou simbólicos.
Há também a psicanálise, minha outra morada. Começo o dia cedo, seis da manhã, no silêncio da clínica, escutando as dores que o mundo insiste em esconder. E às dez, já estou na escola, entre corredores, vozes, urgências. No meio disso tudo, tento me dividir. Ou me multiplicar, entre leituras e filmes, sempre para a SP Escola de Teatro. Neste fim de semana, quero ouvir Vandana Shiva, essa mulher que planta palavras e revoluções e pensa no eco feminismo; e ver os filmes de Wanuri Kahiu e Jenn Nkiru, duas cineastas nigerianas que filmam o amor como quem desafia o cárcere. Penso que podem ser nosso material de trabalho do próximo módulo de nossa escola.
Sim, às vezes a vida não cabe na agenda. Mas é justamente essa abundância que me salva. É tanto trabalho, tanta gente, tanto sonho que o cansaço se torna uma forma de bênção. Sou grato a todos que compõem essa travessia. Dos colaboradores da SP Escola de Teatro, que enfrentam cada obstáculo com coragem, e os conselheiros da Adaap, que se reúnem cada vez mais. Por falar nisso, amanhã, domingo, às onze da manhã, um encontro com eles para inventar o futuro com a gente.
Porque, no fundo, é disso que se trata: inventar o futuro. Ainda que pesado, difícil e cheio de falhas. Nos interessa o que ainda não existe, o mundo que precisa ser descoberto.
Salve o trabalho, salve a vida, salve os que acreditam que podem mudar o mundo. Mesmo cansados. Mesmo em meio aos furacões. Mesmo quando o vento parece soprar contra. Porque é ali, no olho do furacão, que a arte se levanta. E o futuro começa a respirar.
