Sou otimista sempre. Quase uma Poliana.
Ainda acredito nas pessoas. Na sua potência de recomeçar, na sua capacidade de transformar o erro em aprendizado. Acredito que, por trás de cada gesto equivocado, existe um medo, uma defesa, uma tentativa, ainda que torta, de sobreviver. Talvez por isso, às vezes, eu me sinta deslocado no mundo. Enquanto muitos desconfiam, eu insisto em acreditar. Mas há dias em que até os otimistas perdem o fôlego. Dias em que o noticiário parece cuspir desespero. Como agora, ao assistir, em tempo real, as imagens do Rio de Janeiro. A cidade partida, a cidade do espanto, a cidade onde a beleza se mistura à tragédia. Quantos inocentes não sucumbiram? Quantos sonhos se dissolveram na lama e na violência? Quantas vidas se perderam como se fossem descartáveis?
É diante dessas imagens que o pensamento corre, inevitavelmente, a Freud. Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, ele nos fala de algo que talvez explique parte dessa vertigem. O momento em que o sujeito se dilui na massa e, ao fazê-lo, perde sua singularidade. O indivíduo sensível, capaz de pensar e de sentir, torna-se bárbaro no coletivo, prisioneiro da lógica do rebanho. O desejo de pertencer – tão humano, tão primário – o conduz à cegueira.
E, de repente, tudo faz sentido. A multidão tomada por ódio, a tia que encaminha correntes no WhatsApp, o amigo que repete palavras de ordem como um eco sem origem. Nenhum deles é, em essência, cruel. Estão apenas engolidos pela onda, anestesiados pela força gregária que transforma a inteligência em instinto e o afeto em violência.
Mas é fácil acreditar que essa barbárie está sempre lá, distante, no outro.
No Rio, por exemplo. Ou em qualquer outro lugar onde a tragédia pareça não nos atingir. Eu, aqui em São Paulo, vejo as imagens e penso: “Que horror!”. E logo depois sigo o dia, como se o horror não tivesse atravessado minha vida também. Mas há uma linha invisível que nos costura uns aos outros. O que acontece lá não é alheio ao que acontece aqui. O que fabricamos em nossos pequenos universos – nossas ações, palavras, silêncios – reverbera no mundo inteiro.
Na SP Escola de Teatro, onde passo boa parte dos meus dias, percebo isso com clareza. Cada decisão que tomo, cada gesto, cada escolha pedagógica ou institucional, produz ondas que alcançam outros corpos, outras histórias. O mundo não é dividido entre o Rio e São Paulo, entre o eu e o outro, entre o bem e o mal. É uma teia viva, onde o movimento de um fio vibra o tecido todo.
Freud sabia disso, ainda que não o dissesse nesses termos, a massa começa dentro de nós.
Quando nos deixamos tomar por um automatismo qualquer – o da rotina, o do medo, o do poder –, tornamo-nos parte dessa coletividade que age sem pensar. Somos, cada um de nós, uma miniatura da civilização e de suas quedas. A violência do mundo é também o espelho daquilo que deixamos de elaborar em nós mesmos.
Ser otimista, então, não é negar a sombra. É continuar acreditando na possibilidade de cura, mesmo sabendo o tamanho da ferida. É insistir em não se render à massa, em preservar o olhar singular, a escuta sensível, a coragem de ser sujeito . Mesmo quando o mundo inteiro parece pedir o contrário.
Porque, no fim, o que acontece no Rio é sobre mim também. É sobre todos nós.
