MARIA THAIS: COMPROMETIDA COM SEU TEMPO

Vassiliev, Maria Thais e Ivam Cabral em novembro de 2010 (foto: Renata Foratto)

Desde outubro e até este fim de semana, num fato inédito, pela primeira vez a Sede Roosevelt da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco está sendo ocupada por uma companhia de teatro. É a Balagan, da diretora Maria Thais. E tenho muito orgulho disso. Além de admirar pessoalmente Maria Thais, sou fã incondicional de seu trabalho. Assim, trata-se de uma honra recebê-la, bem como à sua trupe, aqui na Escola.

A ocupação, intitulada “Recusa e Prometheus: Uma Simetria Invertida”, compreende dois espetáculos “Recusa” e “Prometheus – A Tragédia do Fogo”, além de outras atividades, como a exibição de filmes e a realização de encontros e shows. Neste fim de semana, a companhia se despede da Escola, com as três últimas sessões de “Recusa”.

Antes de dizer “adeus”, ou melhor, “até logo”, tive a chance de bater um papo, via e-mail (pois a correria de ambos assim exigiu), com a diretora Maria Thais. Nele, detalhes da concepção das duas montagens, a imprescindível colaboração de Marlui Miranda como diretora musical de “Recusa”, a experiência de ocupar uma escola de teatro, entre outros assuntos. A seguir, a conversa, na íntegra:

Ivam Cabral – A Balagan foi a primeira companhia de teatro a ocupar a Sede Roosevelt da SP Escola de Teatro. Como tem sido a experiência?
Maria Thais –
 Feliz, em todos os sentidos. Inaugurar um espaço é, de alguma forma, “impregná-lo” de algo! E ser impregnado por ele – vazio, mas cheio de possibilidades! Para a Cia. Balagan, a ocupação foi a oportunidade de fazer os dois últimos espetáculos do grupo, criados nos últimos cinco anos de trabalho e que são frutos de longos processos de aprendizado. É significativo apresentá-los em um lugar dedicado à formação teatral e que se dispõe a abrigar uma companhia de teatro.

IC – O tipo de público que vai a um teatro dentro de uma escola é diferente daquele que vai a um teatro convencional?
MT – 
Sim e não. Porque vivemos em uma cidade muito multifacetada e o espectador de teatro, do mesmo modo, é muito diverso. A presença dos aprendizes é um fator importante. São jovens que se ocupam do teatro, que se preparam pra ter a mesma profissão que exercemos. Mas recebemos com muita alegria os moradores do Centro de SP, que voltaram a passear na Praça Roosevelt e chegam curiosos para conhecer a Escola e o que acontece lá dentro. Eles nos pareciam surpresos, mas presentes, curiosos. Tivemos também o público da Praça Roosevelt – frequentadores e curiosos, e, ainda, os artistas que trabalham nos teatros vizinhos, além de estudantes de outras escolas e outros artistas que produzem em diferentes regiões da cidade. Um ponto de convergência. É um público diversificado, inclusive na faixa etária, o que cria em torno do trabalho um movimento muito bom!

 IC – Gostaria que você contasse um pouco como foi o processo de concepção de “Prometheus – A Tragédia do Fogo”, espetáculo que vem sendo trabalhado pela companhia desde 2008, se não me engano…
MT – Na verdade, tudo começou em 2007, dentro de um projeto de investigação que tinha como título “Do Inumano ao Mais-Humano”. Nele, fizemos as primeiras experiências com o texto do Ésquilo, em grego antigo. Queríamos a prática do verbo, lidar com a materialidade da palavra. E o exercício em uma outra língua nos lançava em um terreno muito difícil, mas concreto. No ano seguinte, resolvemos transformar esta experiência em um espetáculo – não a montagem do texto Ésquilo, mas a criação de uma nova dramaturgia a partir do mito de Prometheus. O grande diferencial do processo de criação do Prometheus foi ter sido o próprio espetáculo a pesquisa. Pela primeira vez na companhia, todas as etapas de construção foram compartilhadas, tornadas públicas. Foram inúmeras versões – apresentávamos e, ao voltar pra sede do grupo, refazíamos. Foram dois anos fazendo, apresentando e refazendo! O  acordo entre nós foi este: fazer e refazer. Em outubro de 2011, fechamos a versão que  apresentamos agora. Ainda não deixamos de ensaiar, de lapidar, mas existe uma concepção fechada que, por enquanto (risos), tem se mantido e que continua sendo objeto de investigação.

IC – “Prometheus” aborda um mito grego; “Recusa” trata de mitos indígenas. Em que ponto esses dois trabalhos se cruzam?
MT – 
Eles se cruzam desde o início porque nascem do projeto “Do Inumano ao Mais-Humano” (que era dividido em cinco partes). Dos estudos sobre o Trágico nasceu “Prometheus” e dos estudos sobre o Inumano-Animal – no qual estudamos elementos da cultura ameríndia – nasceu “Recusa”.  No decorrer do processo, fomos percebendo outras camadas de diálogo. Ao final, podemos dizer, seguramente, que ambos falam dos mitos da criação do mundo e, principalmente, do mito do duplo. Mas são perspectivas absolutamente diversas. Falam da “mesma coisa”, mas não do “mesmo jeito”. E é a diferença que nos interessa!

IC – Desde quando o processo de concepção de “Recusa” foi se desenvolvendo?
MT – 
Começamos em outubro de 2009. Processo bem diverso do que relatei sobre “Prometheus”, pois, neste, de algum modo, tínhamos como ponto de partida as referências teatrais ou literárias – Ésquilo, H.Muller, Pirandello e tantos outros que escreveram sobre o mito ao longo dos séculos. No caso do “Recusa”, tínhamos apenas uma notícia de jornal, um interesse e um desconhecimento sobre a cultura ameríndia. Inicialmente, não sabíamos nem mesmo se conseguiríamos fazer um espetáculo. Dedicamos muito tempo aos  estudos: textos de antropologia, leitura dos mitos, tateando os cantos e narrativas, os discursos políticos sobre os povos indígenas, os relatos dos conflitos etc. Fomos, pouco a pouco, descobrindo outros materiais – nos relatos etnográficos e na grande produção,  que começa a se fazer visível, de escritos, vídeos, documentos etc. , feitos pelos povos ameríndios. Paralelamente, nos dedicávamos ao trabalho laboratorial, o fazer e refazer  – um processo de criação de cenas que muitas vezes partia de materiais pouco usais, como, por exemplo, o relato etnográfico. Durante o processo, tornamos algumas experiências públicas, o que nos dava um termômetro da dificuldade de encontrar uma forma cênica justa. Ora vislumbrávamos caminhos férteis, ora nos emaranhávamos nas resoluções encontradas, ou seja, dávamos soluções que faziam parte do nosso repertório teatral, mas que não pareciam justas, que não correspondiam ao material. O tempo, acho, foi nosso maior aliado. Ele nos ajudou a depurar!

IC – Você acha oportuno abordar a causa indígena justamente em um momento em que a questão dos índios Kayowas (que lutam pela sobrevivência e por suas terras no Mato Grosso do Sul) está em pauta?
MT – 
Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “O que me interessa são as questões indígenas – no plural”. Não creio que exista uma causa ameríndia, mas causas. Como não creio que as questões indígenas tenham, em algum momento, saído de pauta. Elas são ignoradas. Invisíveis – há séculos! O caso dos Guaranis-Kayowas é drástico, mas não é o único. A repercussão da carta dos Kayowas fez ecoar. Comove, talvez pela ideia de finitude? Mas é uma circunstância que se reproduz há séculos neste País e que nos lança a pergunta à qual deveríamos ter coragem de responder: “Qual o lugar dos índios no Brasil?” (feita inúmeras vezes por Viveiros). Pois o problema está lá, mas também está aqui – nas aldeias espremidas na periferia desta cidade, nos milhares de ameríndios que vivem em nossas favelas. Invisíveis!

IC – Falando nisso, para a montagem de “Recusa”, a companhia passou um tempo convivendo com os índios, em suas aldeias. Como foi essa experiência?
MT – 
Então… Conhecemos os Paiter Suruí em Rondônia. Para nós, esta relação não estava pautada na ideia de ir ver para fazer igual. Ao contrário, fomos para lá para encontrar um povo, que também queria nos encontrar. Encontrar e conviver, estabelecer relações e não simplesmente observar. A partir daí, tudo muda. Estabelecemos laços com eles que continuam vivos. Eles querem fazer um espetáculo de teatro. O trabalho continua em 2013. Voltaremos para lá, para dar prosseguimento ao projeto. Eles nos contaram seus mitos, cantos, festas. Batizaram-nos, nos adotaram generosamente como irmãos (os laços, as relações são – como nos avisaram no início –, para sempre), nos deram nomes. Nós apresentamos o nosso trabalho, queriam saber o que é teatro, fizemos, mostramos filmes, mostramos também como trabalhamos. Enfim, trocamos. Foi uma experiência de encontro, de troca.

IC – Você acredita que há uma saída para a convivência entre brancos e índios, sem que esses últimos sejam subjugados cultural e economicamente? No mundo, nunca se viu um caso assim, certo?
MT – 
Não é porque não existiu que não possa existir.  Sempre existiram saídas, tanto é que esses povos estão vivos, atuantes, crescendo cada vez mais e se valendo de muito do que o mundo branco cria para poderem permanecer como grupo, como povo. E as saídas mais felizes são as que conseguem reconhecer as diferenças entre eles e nós. Por muito tempo, e o mais assustador é que ainda hoje, estes povos (é preciso lembrar que são muito diferentes entre si, chamá-los de índios é uma generalização, uma armadilha também) foram chamados de primitivos, não civilizados. Esse pensamento almeja a igualdade redentora: eles estão num estágio inferior ao nosso, mas (se se esforçarem) podem chegar a ser igual a nós, só estão atrasados!  Então, nós sabemos mais do que eles?! É esta ordem de ideias que tem servido para uma cultura dominar a outra. Sabemos hoje que muitos dos povos ameríndios recusam a  organização do Estado como tal. Que se organizam de outra maneira. O que não quer dizer, atrasados. Recusam-se a serem iguais a nós. Mas querem, e muito, saber de nós, como vivemos, o que pensamos, o que produzimos. Eles são curiosos quanto ao que não conhecem do outro, o que raramente a cultura branca faz em relação a eles. Tem sido mais fácil pensá-los com os nossos padrões e ideias de mundo do que nos deslocarmos e reconhecermos como eles pensam. O último Censo mostra que no Brasil existem, vivas, em torno de 270 línguas indígenas. Este dado é revelador e mais ainda por ser desconhecido. São mais de 270 visões de mundo (ameríndias apenas). Pode ser uma pista pra encontrarmos a saída?

IC – Qual a importância do trabalho de Marlui Miranda, como diretora musical de “Recusa”?
MT – 
Marlui foi parceira generosa! Sensível aos nossos desejos e ignorância. Além de nos apresentar um universo musical desconhecido, foi a ponte entre a Balagan e o povo Paiter Suruí. Ela conhece este universo profundamente e, mais que isso, como artista, dialoga com ele em suas criações; não simplesmente reproduz, atitude que desde o início do trabalho almejávamos – dialogar, e não reproduzir. Marlui nos apresenta esse universo dimensionando a função da música e, mais especificamente, do canto, nessas tradições. O canto não é uma música qualquer. Ele é sempre uma via de comunicação com os espíritos, animais, coisas, com outras formas de humanidade.  O canto é uma ação que move o mundo! Para a encenação, para a atuação, isso foi um presente, pois a matéria do teatro é a ação. Vê-la cantar – sozinha e com eles –, partilhar sua alegria, curiosidade, respeito e rigor com os materiais, nos deu a dimensão do trabalho de investigação de uma artista que vai muito além do ato de produzir um disco ou um show.

IC – Como surgiu a ideia de promover encontros, filmes, e outras atividades na Mostra? Qual o objetivo dessas outras ações em relação aos espetáculos?
MT – 
Essas atividades desdobram os espetáculos para os espectadores e é sempre a chance de a própria companhia rever referências que foram importantes nos processos de criação e abrir para novas referências. Com a Mostra, pretendemos ampliar o olhar do espectador, e o nosso, sobre o que criamos. A leitura, a análise e a reflexão sobre a criação geram outra obra! Produzem outra criação – que, por sua vez, revela o que não sabemos sobre a obra. Por outro lado, desvenda, pra quem se interessa, o processo, as referências, as escolhas, as intenções, os procedimentos, a feitura! A artesania do teatro.

IC – Há planos de continuar a parceria com a SP Escola de Teatro?
MT – 
Estamos encerrando esta Mostra nesta semana e não temos nada concreto. Mas a parceria está estabelecida e saímos daqui satisfeitos e alegres pela recepção, pelo acolhimento  e olhar atento ao nosso trabalho. Os desdobramentos serão bem-vindos e construídos com delicadeza! Obrigada! Aos funcionários, aprendizes, orientadores, coordenadores, coordenador pedagógico, diretor… Enfim! A todos!

IC – E, como dizem os Paiter Suruí, que esses laços sejam para sempre!

Fonte: SP Escola de Teatro, 14 de dezembro de 2012

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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