O tempo

— Alô.

— Será que você vai reconhecer a minha voz?

— Fala mais um poquinho, estou me lembrando.

— Liguei porque estou morrendo de saudade.

— Se você está com saudade é porque é íntimo e eu devo me lembrar de você.

— Se não se lembrar, não tem importância.

— Tem imporância, sim, claro que tem importância. Carinho a gente responde com carinho.

— Isso eu também acho.

— É da música que eu te conheço?

— Não, do teatro.

— Ah, eu ando tão distante do teatro. Não vou mais porque as poltronas são muito desconfortáveis e as peças estão muito chatas.

— Não, tem muita coisa boa por aí.

— Eu acho que o pessoal da música gosta mais de mim.

— Não fale isso.

— Só o Amorim e o Orias vêm me visitar, ninguém mais. Você conhece os dois?

— Como não? Adoro esses dois.

— Você tem carro?

— Tenho carro, sim.

— É que o Amorim não tem carro, mas o Orias tem. Fica mais fácil pra sair, caso você me convide para sair.

— Então você já se lembrou de mim?

— Ainda não.

— E como você aceita sair com um desconhecido?

— Desconhecido você não é. Já me falou que é do teatro.

— Verdade, falei.

— As pessoas do teatro são mais legais que as da música.

— Você acha?

— Acho, sim. É mais família. O problema é que quando brigam são muito rancorosos.

— Coisas de família.

— Isso é verdade. Família a gente não escolhe.

— Queria dizer que você é uma pessoa muito importante na vida vida. E te agradecer por isso.

— Você acha mesmo isso?

— Certamente eu e metade do pessoal do teatro da cidade.

— Ah, você está sendo muito gentil.

— Não, é pura verdade. Obrigado pelas suas aulas, obrigado pelos seus livros, pelas suas críticas.

— Como você sabe disso tudo?

— Sou teu fã.

— Você é galanteador.

— Sou carinhoso com quem eu gosto.

— Agora você precisa me falar quem você é.

— Ivam Cabral, dos Satyros.

— Espera, estou me lembrando de você.

— Ufa, que bom, já estava ficando triste.

— Por que você sumiu?

— Andei trabalhando demais.

— Vocês trabalham demais. Não era assim na minha época. A gente se divertia mais. Vejo pelos meus filhos.

— O mundo tá ficando maluco.

— Desculpa, mas estou e não estou me lembrando bem de você. Quer dizer, acho que sim, mas não consigo me lembrar do seu rosto. Faz muito tempo que a gente não se vê?

— Faz tempo, sim.

— E por que você sumiu?

— Tudo muito complicado, andei sumido do mundo, sabe?

— Como eu agora?

— É, um pouco como você.

— E o que você faz pra se lembrar do rosto das pessoas?

— Ah, não penso muito nisso. Pra mim é melhor que as pessoas não tenham rosto.

— Ivam, né?

— Sim, sou o Ivam.

— Claro que eu me lembro de você. Claro. Mas ainda não consigo me lembrar do seu rosto.

— Isso não é importante.

— Então você me busca aqui e vamos almoçar juntos. Tem um restaurante ótimo aqui do lado. Oriental. Nem japonês, nem chinês. Mas tem opções pra minha filha, sabe?

— Eu amo cozinha oriental.

— Ótimo, vamos eu, você, minha filha, o Amorim e o Orias.

— Sim, vamos todos.

— Um beijo.

— Outro. Adorei que você ligou, Ivam.

— Amei falar com você também.

— Só acho engraçado falar com alguém que não tem rosto.

— Não acho, não.

— Tchau.

— Até.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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