Em 1985 eu fazia o primeiro ano do curso superior de teatro da PUC/PR, em convênio com a Fundação Teatro Guaíra, e nossas aulas aconteciam no próprio teatro, no centro de Curitiba. Então, desde sempre, minha turma aprendeu a varar o teatro.
Varar é um termo que aprendi na infância, com a vinda dos circos na minha cidade. Como a gente não tinha dinheiro para pagar a entrada, a gente varava o circo. Assim. Quando era liberada a entrada das pessoas, procurávamos um lugar escuro, sempre nos fundos, levantávamos a lona e pimba, lá estávamos nós como um espectador comum. Evidente que o pessoal do circo se precavia deixando seus leões de chácara para cuidar do assunto. Mas, evidente também, que a gente sempre encontrava um jeito de despistar os leões e entrar nas sessões.
Então, quando eu entrei nessa graduação da PUC, ensinei os meus amigos a varar o Teatro Guaíra. Valia tudo, ali. Lembro de uma vez que passamos quase nove horas atrás das cortinas vermelhas que ficavam na entrada do auditório principal para assistir a uma apresentação do Ney Matogrosso. Sim, eu disse NOVE horas! Tínhamos acesso livre ao teatro porque havia uma cantina interna que servia almoço aos funcionários e alunos. Naquele dia chegamos perto do meio-dia e antes da uma da tarde lá estávamos nós, enrolados naquelas cortinas de veludo vermelho.
Mas o frisson mesmo aconteceu quando vimos anunciada a apresentação de Tônia Carrero na cidade, com o espetáculo “A Divina Sarah”, um texto de John Murrell, com direção de João Bithencourt, e com Cecil Thiré, além da Tônia no elenco. Alvoroço geral. Os estudantes que tinham dinheiro compravam seus bilhetes; os que não, varavam. Eu pertencia ao segundo grupo.
Mas a gente era metido também, queria sempre se aproximar dos artistas famosos, fazer contato, essas coisas. Assim, eu e o Abílio Ramos, meu querido companheiro de turma, metemos na cabeça que íamos conversar com a Tônia, antes da sessão. Sei lá como, inventamos que éramos jornalistas e combinamos uma entrevista com a grande dama. No dia da estreia, no horário marcado, era final de tarde, lá fomos nós no camarim da diva para entrevistá-la. Acertamos antes, Abilio seria o fotógrafo, e eu, o jornalista. Mas não demos conta de que um fotógrafo tinha que ter um equipamento profissional, e o Abílio levou uma dessas câmeras portáteis bem chumbrega.
Tônia nos recebeu super bem, elegante como sempre, enquanto eu ia fazendo perguntas e anotando em um caderno, o Abilio tirava fotos, naquela câmera chinfrim. Até que, entre uma pergunta e outra, Tônia dispara:
— Mas essa câmera aí é profissional?
Nossa, foi uma confusão de engasgos e tosses secas para explicar que o equipamento profissional do Abilio havia quebrado, mas que, com a experiência dele, as imagens ficariam lindas, etc e tal. E, claro, o que a gente queria mesmo era tirar uma foto com ela, acho que mais nada.
Saímos do camarim e tínhamos, então, que nos preparar para varar a peça. Mas, sabe-se lá o porquê, naquele dia foi bem difícil, os funcionários do teatro andavam de um lado pro outro e nós não conseguimos nos esconder em alguma cortina de veludo vermelha. Tive uma ideia:
— E se a gente fosse no compartimento dos canhões?
O Teatro Guaíra é uma maravilha, enorme labirinto, cheio de compartimentos incríveis. Lá em cima, perto do teto, haviam duas pequenas salinhas, uma em cada lado do teatro, que serviam para acomodar os canhões de iluminação que eram usados mais em shows, raramente em peças teatrais.
Faltando umas duas horas para o início do espetáculo, lá fomos nós, pros cafundós do teatro, e nos instalamos numa dessas salinhas. A peça começa no horário, por volta das nove da noite, e de lá, a gente assiste as maravilhas de Tônia Carrero e Cecil Thiré. Era um trabalho bastante inspirado da dupla e até hoje eu trago trechos inteiro dele na minha memória.
A peça chega ao final, Tônia, uma rainha, agradece o público e… chama o Abilio e eu ao palco, um jeito carinhoso de agradecer a imprensa do Paraná, que sempre foi muito querida e respeitosa com ela, como anunciou.
Neste momento, eu e o Abilio ficamos atônitos. Mesmo que quiséssemos, não conseguiríamos sair de onde estávamos para chegar ao palco no tempo que a situação pedida. Mais, teríamos que burlar segurança, lanterninhas e técnicos. Enquanto pensava o que iríamos fazer e presenciava o silêncio da plateia esperando os jovens jornalistas chegarem no palco, só ouço um gemido do Abilio.
— Ai, Cabra…
Sim, o Abilio sempre me chamou de Cabra. Eu me preocupo com aquele gemido, era doído, sabem?
— O que houve?
— Tô fazendo xixi nas calças e não consigo parar.
— O quê?
— Acho que foi de emoção ao ouvir a Tônia dizer o meu nome.
Bom, o que se passou a partir daí foi uma comédia até o final. O Abilio tinha feito muito xixi nas calças e a gente ainda teria que sair da salinha dos canhões e enfrentar um mundo de funcionários do teatro para sair dali. E passar, dias seguidos, explicando pros amigos o porquê da Tônia ter nos chamado no palco e, mais, de jornalistas. Jornalistas, nós? Hahahahaha.
* a foto em destaque é daquele dia. Olhem só o nível do equipamento, hahaha
Maravilhoso relato! Minha dúvida é se a falsa entrevista ficou guardada para a posterioridade. 🙂
ms.novoa@bol.com.br
Adorei a aventura … Muito o texto… Parabéns…