O dia em que eu disse eu te amo para o Belchior

Em 1984 eu tinha 20 anos e vivia sozinho num apartamento na rua XV de Novembro, no centro de Curitiba, trabalhava numa corretora de valores e estudava na Faculdade de Administração e Economia da PUC/PR. Era a primeira vez que tinha um apartamento só meu e estava muito feliz. O apartamento era, na verdade, uma quitinete, cerca de 30 metros quadrados, não mais do que isso. Mas era charmosa a danada! Aluguei mobiliada e a única coisa que fiz foi comprar um aparelho de som: um dois em um, toca-discos e rádio. Não tinha televisão e nem fazia gosto.

O Brasil era um caos. Nosso presidente era o Figueiredo e o ano começou com uma tragédia na Petrobrás, com a explosão de um duto na Favela Socó, em Cubatão, onde morreram mais de 500 pessoas. No mundo, Michael Jackson tinha lançado seu álbum “Thriller” e “Beat It” era a música mais tocada nas rádios do planeta inteirinho. Madonna lançava seu álbum mais icônico, o “Like a Virgin”, onde no primeiro VMA protagoniza a histórica aparição vestida de noiva. No Reino Unido, mais de 30 artistas participam da gravação de “Do They Know It’s Christmas?”, com o objetivo de angariar fundos para as vítimas da fome na Etiópia.

A tão festejada MPB começava a sua decadência. Elis Regina e Clara Nunes tinham morrido e estrelas como Gal Costa e Maria Bethânia, por exemplo, já não sabiam direito o que fazer com o fenômeno da explosão do rock nacional, com Marina Lima, Titãs e Legião Urbana, que comandavam, soberanos, as paradas de sucesso do país.  

Em Curitiba, os mais de  dois mil assentos do Guairão eram atrativos para essa moçada, que transformava o tradicional palco do teatro em uma arena nervosa. E era engraçado assistir a shows ali. A gente nunca sabia se levantava pra dançar ou respondia aos pitos dos espectadores que ficavam bravíssimos com a gente quando ensaiava um entusiasmo a mais. 

Foi assim que fui parar na plateia do Teatro Guaíra para assistir ao show “Cenas do Próximo Capítulo”, do Belchior, que tinha lançado um disco homônimo e que, pelos motivos que elenquei acima, já não tinha a mesma força de seus lançamentos anteriores, mostrando o seu lado roqueiro, mas já sem grande entusiasmo da plateia.

Eu sou uma pessoa completamente sem noção. Para o show, comprei ingresso na fila A, no centro. E fui sozinho ao teatro. Aliás, nesse período, ia sempre sozinho ao teatro e ao cinema. Meus amigos estavam muito mais interessados nas noites animadas da boate La Belle Époque, o reduto gay da cidade, que fervia corpos e ânimos de seus frequentadores. Meu Deus, que tempo bom esse!

Mas tem um detalhe aí. Belchior era meu ídolo supremo. Dizia sempre que ele cantava pra mim, ninguém nunca tinha me falado nada, mas eu tinha certeza disso.

Então eu estou assistindo ao show do Belchior, feliz, na frente da plateia lotada. E, não sei o que me deu, mas a cada canção, após os aplausos, eu gritava:

– Toca “A Palo Seco”.

Quase no final do show, no entanto, quando pela enésima vez eu fazia o mesmo pedido, e ao iniciar “Forró no Escuro”, a composição do Gonzagão e que encerrava o show, Belchior pede que seus músicos parem de tocar. Silêncio constrangedor e um momento de suspenção, como se estivesse em um filme do David Lynch. O músico pede que acendam as luzes de serviço do teatro e resolve falar comigo. Pergunta meu nome e o porquê de eu gostar tanto de “A Palo Seco”. Não me lembro direito o que eu respondi, estava muito, muito nervoso. E envergonhado. De verdade, eu sempre me comportei em shows, mas, sei lá, estava louquinho naquele dia, cheio de amor pra dar e lágrimas pra chorar.

Foi assim que Belchior, dizendo que não tinham ensaiado, resolve cantar “A Palo Seco”. Ao final da canção, eu estou em lágrimas e meu ídolo se aproxima até à boca de cena e me entrega o microfone para que eu encerre com o verso final da canção, 

“E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês”. 

Os músicos param de tocar, esperando que eu avance para que eles terminem a música naquela apoteose de baterias e guitarras que dão um boooom final, um silêncio ensurdecedor no teatro, e eu perco completamente a voz. Quem me conhece bem já me viu perder a voz em momentos constrangedores. O Tato Consorti, que me assiste na SP Escola de Teatro, sabe bem disso. Quantas vezes eu perdi a voz em reuniões tensas, como quando discutimos orçamentos na Secretaria de Cultura, por exemplo. Meu Deus!

Aquele silêncio, entre a pausa do Belchior e o boooom dos músicos, durou uma eternidade. E, com a voz em fiapo, num agudo que nunca tinha me visto antes, só consegui dizer:

– Belchior, eu te amo.

E foi assim que os músicos encerraram a canção e que eu me afundei na minha poltrona, com muita, muita vergonha. Mas foi assim também que Belchior, do palco, ao final dos aplausos, me convidou para jantar com ele. Terminamos a noite na pizzaria Acrótona, na rua Cruz Machado, no centro da cidade, e foi uma das noites mais incríveis e mágicas de toda a minha vida.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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