Meus mortos, minha vida

Tive que refazer meus pactos, não estava dando mais certo, eu não estava aguentando. Começou assim: quando a Sofia morreu, há três anos, eu fiz uma promessa. Durante todos os dias da minha vida, eu me lembraria dela. Sou canceriano, metódico e costumo cumprir minhas promessas. Para que eu não esquecesse – isso jamais poderia acontecer! –, criei um pequeno esquema. Fixei um prego no batente da porta de entrada de casa. Deste modo, todas as vezes que chegasse na porta de casa, tocaria no prego e a memória da pequena Sofia seria honrada.

Um tempo depois, em novembro de 2017, morreu meu irmão Dimi. Nossa, como foi triste, meu Deus! Raramente senti dor tão doída! Assim, mais uma vez prometi ao Dimi que não haveria um dia sequer, em todos os dias que me restassem, que eu não me lembraria dele. Então, tirei o tapete no hall de entrada de casa. A falta deste tapete me traria a memória do meu amado irmão, todas as vezes que eu saísse do elevador.

No ano passado, em outubro, morreu a minha Marcolina e eu entrei em parafuso. No leito de sua morte, fui mais além. Prometi a ela que, toda vez que entrasse no meu apartamento, colocaria a minha mão direita no meu coração. E, mão no peito, ela poderia  viver por ali, ainda que em lembranças.

Estava ficando difícil, mas eu estava conseguindo. Até a morte da Antônia, na semana passada, minha rotina era a seguinte: ao sair do elevador, no meu andar, eu olhava para o chão e a falta do tapete no hall de entrada, me lembrava o Dimi. Neste momento, eu já estava colocando a chave na fechadura. Enquanto abria a porta com a mão direita, com a esquerda tocaria o prego no batente, e minha doce Sofia surgia no meu coração. Ao entrar e bater à porta, imediatamente minha mão direita tocava meu peito e a lembrança de Marcolina surgia, toda iluminada.

Todavia, este ritual não só estava ficando complicado, como tétrico também. De repente as lembranças do meu pai e da minha mãe, mortos também, insistiam em aparecer nesta rotina.

Com a morte da Antônia, agora, decidi deixar meus mortos em paz. Chega, eles precisam descansar. Então, ao invés de rituais de lembranças, chorarei por eles, vez em quando – só vez em quando, prometo – e procurarei ser feliz. Para que todos nós tenhamos paz. Afinal, é de amor que estamos falando.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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6 comentários em “Meus mortos, minha vida

  1. Puxa Ivam, sinto muito pela Antônia, tão graciosa. Que seus lutos sejam vividos de maneira tão leve quanto possível, que os choros sejam intensos e breves e que a dor seja rapidamente substituída pela saudade. Beijo enorme

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