EU NÃO QUERO ESQUECER

Uma senhora, setenta e poucos anos, acuada na porta de uma loja fechada. Em meio a tantos moradores de rua, aquela mulher, bem vestida, ali, chamava a atenção.

Há anos sou morador do centro da cidade e costumo caminhar pelas suas ruas. Principalmente às noites, quando seu ritmo e luzes diminuem as intensidades.

Aconteceu há um tempo. Três ou quatro anos atrás. Nesta época, eu vivia na Avenida São Luis e, mais ou menos umas 11 horas da noite, caminhava pela Praça da República. É quando uns cabelos brancos me chamam a atenção.

Uma senhora, setenta e poucos anos, acuada na porta de uma loja fechada. Em meio a tantos moradores de rua, aquela mulher, bem vestida, ali, chamava a atenção. Caminho ainda alguns passos sem conseguir tirar os olhos dela. Quando estou bem próximo, ouço a senhora dizer, quase num sussurro:

– Eu não quero morrer.

Abaixo a cabeça e diminuo os passos. Torno a ouvir, agora, quase num lamento:

– Eu não quero morrer.

Então paro. Tento puxar conversa, mas a senhora de cabelos brancos se nega a falar comigo. Penso que estou sendo inconveniente e resolvo seguir meu trajeto.

Depois de uns trinta ou quarenta minutos, de volta pra casa, encontro a mesma senhora, parada no mesmo lugar. Mais uma vez tento puxar conversa. É quando ela resolve falar.

Pausadamente e visivelmente amedrontada, me revela, de maneira confusa, que está perdida, que saiu de casa para ir à farmácia e que não se lembra de seu nome, nem de seu endereço. Avisto um carro de polícia a poucos metros de nós e sugiro que procuremos ajuda. A mulher se estremece.

– Eles têm armas. Eu não quero morrer, balbucia.

Eu não sei o que fazer. Pergunto a ela, já que ia a farmácia, se tem alguma receita, talvez encontre seu nome. Me responde que ia comprar apenas água.

Então começa a remexer seus bolsos e tira alguns papéis. Encontro um cartão postal todo amassado com algumas anotações. Entre elas, dois números de telefone. Imediatamente, começo a ligar do meu celular. Estou nervoso.

Na primeira tentativa, uma voz de criança.

– Qual o nome da tua avó?, pergunto.

A criança se cala e uma voz feminina passa a falar comigo. Explico o que está acontecendo e a mulher, do outro lado da linha, não consegue me esclarecer nada. Diz não conhecer ninguém com as características da senhora perdida na Praça da República. Afoito, desligo o telefone.

Tento o outro contato. Uma secretária eletrônica me informa um novo número de celular. Ligo correndo e mais uma vez a ligação cai numa caixa postal. Estou completamente arrebatado por aquela história. Não tendo mais o que fazer, decido procurar os policiais que estão próximos dali.

Enquanto caminho, meu celular toca. Atendo e uma mulher me pergunta se era eu que acabara de ligar para ela. Sinto um pequeno alívio. Explico o que está acontecendo. Silêncio. Do outro lado da linha, um choro doído, doído. Depois de um tempo, a mulher me diz que mora com a mãe e que quando chegou em casa, naquela noite, não a encontrara. Que isso nunca havia acontecido antes e que estava desesperada. Pergunto pelo seu endereço e me informa que mora na Avenida São Luis. Éramos vizinhos.

À meia noite, chego na casa das duas mulheres que, ao se encontrarem, se abraçam de maneira desesperada. A senhora mais velha parece uma criança desamparada. A outra, tenta engolir um choro aliviado. Por dentro, estou dilacerado.

Depois de um tempo, me despeço. De volta pra casa vou pensando:

– Eu não quero esquecer.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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