CRÍTICA | A casa libertária de Garcia Vázquez

Bob Sousa

A Casa de Bernarda Alba” pela Cia Os Satyros, dirigida por Rodolfo García Vásquez, um dos principais encenadores do país, com a adaptação de Ivam Cabral, se destaca pela ousadia em revisitar um clássico de Federico García Lorca sob uma perspectiva contemporânea, ao mesmo tempo em que se mantém fiel à essência das tensões e temas originais. Este breve estudo pretende explorar a narrativa visual e a construção da visualidade do espetáculo, entrelaçando as teorias de Mikhail Bakhtin e as proposições de Lorca, oferecendo uma breve análise crítico-visual da estética e da semântica visual apresentadas.

Mikhail Bakhtin, com sua teoria do dialogismo, oferece uma lente crítica poderosa para entender a multiplicidade de vozes e perspectivas presentes na encenação. Lorca, em “A Casa de Bernarda Alba”, constrói um microcosmo de opressão e repressão dentro de um ambiente doméstico, onde as vozes das personagens femininas lutam por expressão. A adaptação de Cia Os Satyros intensifica esse conflito ao propor três elencos distintos – feminino, masculino e misto –, compostos por Alessandra Rinaldo, Alex de Felix, Andre Lu, Anna Paula Kuller, Augusto Luiz, Diego Ribeiro, Eduardo Chagas, Elisa Barboza, Felipe Estevão, Gabriel Mello, Guilherme Andrade, Heyde Sayama, Isa Tucci, Isabela Cetraro, Julia Bobrow, Juliana Moraes, Karina Bastos, Luís Holiver, Mariana França, Neni Benavente, Raul Ribeiro, Tammy Aires, Vitor Camargo, Vitor Lins, Wil Campos. Cada construção de elenco trazendo uma camada adicional de significado e potencializando novas interpretações e discursos de liberdade, propostos por Rodolfo Garcia Vázquez.

A teoria do dialogismo de Bakhtin sugere que todo discurso é uma resposta a outros discursos. Em “A Casa de Bernarda Alba”, cada elenco traz uma nova polifonia para a cena, enriquecendo a narrativa com múltiplas camadas de significado. As interações entre os diferentes elencos e suas interpretações das personagens não apenas dialogam entre si, mas também com o texto original de Lorca e com as expectativas do público.

Federico García Lorca concebeu “A Casa de Bernarda Alba” como uma “tragédia das mulheres na Espanha”, focando nas opressões sociais e patriarcais. A versão respeita essa visão, mas a expande ao incluir questões contemporâneas sobre gênero e sexualidade. As teses de Lorca sobre a repressão sexual e a luta pelo desejo são palpáveis na encenação, particularmente através dos momentos em que as personagens encontram brechas para expressar sua individualidade, mesmo que de maneira fugaz.

A narrativa visual de é marcada por um forte contraste entre luz e sombra, que metaforiza a dualidade entre repressão e desejo. A iluminação audaciosa, de Flávio Duarte, cria espaços de claustrofobia e libertação, evidenciando a tensão constante nas vidas das personagens. A paleta de cores, predominantemente sombria, com tons de preto e vermelho, reforça a atmosfera de luto e austeridade imposta por Bernarda.

Os figurinos, criados pelo curso livre de criação e desenvolvimento de figurino do Senac, com supervisão de Maíra D. Pingo e Fábio Martinez, desempenham um papel crucial na construção da visualidade. Na versão feminina, que assisti na estreia da obra com o Teatro Raul Cortez lotado, os trajes pretos – com pequenas variações de estampas coloridas que remetem a Espanha de Lorca -, simbolizam a imposição do luto e da repressão.

A maquiagem, construida coletivamente pelo grupo, também desempenha um papel crucial na construção da visualidade e na intensificação dos temas de repressão, feiúra interior e exterior, intensamente citadas por Bernarda em relação às filhas. A decisão de utilizar maquiagem que evidencia a feiúra das filhas e de todo o elenco não só subverte as expectativas estéticas, mas também amplifica a tensão emocional e a crítica social presente na obra.

Ela serve como um espelho da repressão severa que Bernarda impõe sobre suas filhas. Esta escolha estética externaliza a deformidade interna causada pela opressão, pela falta de liberdade e pelo sufocamento dos desejos individuais. As sobrancelhas extremamente marcadas tornam visíveis as cicatrizes emocionais e psicológicas das personagens, simbolizando a deterioração de suas almas sob o regime tirânico de Bernarda.

Ao optar por esta estética grotesca, a montagem desconstrói a noção tradicional de beleza. Em vez de apresentar personagens femininas idealizadas, a peça coloca em destaque a realidade crua e dolorosa da vida das mulheres sob repressão. Este signo não só desafia as convenções estéticas, mas também força o público a confrontar a verdade desconfortável das consequências do autoritarismo e da rigidez moral.

A maquiagem grotesca amplifica as emoções das personagens, tornando seus estados internos mais visíveis e palpáveis. O público é constantemente lembrado do sofrimento e da angústia das filhas de Bernarda, e cada expressão facial carregada de dor e desespero é acentuada pela maquiagem. Isso cria uma conexão mais visceral entre as personagens e o público, aumentando o impacto emocional da narrativa, especialmente marcada na cena do jantar à mesa com toda a família.

A maquiagem também é utilizada para diferenciar sutilmente os graus de opressão e resistência entre as personagens, mesmo enquanto impõe uma aparência geral de feiúra. A maquiagem de Angustias, a filha mais velha, é ainda mais marcada, refletindo sua desesperança profunda, enquanto a de Adela, que luta contra a toda a repressão, traz sinais de um desejo incontrolável de liberdade, apesar das marcas de sofrimento. Esta nuance permite que o público identifique e compreenda as dinâmicas individuais dentro da família.

Visualmente, a maquiagem grotesca cria uma coesão estética que unifica a produção. Todas as personagens, independentemente do gênero do elenco, são apresentados como vítimas de um ambiente opressivo, contribuindo para uma sensação de unidade na diversidade. Esta uniformidade estética destaca a universalidade dos temas abordados na peça, mostrando que a repressão e suas consequências não são exclusivas de um único gênero ou grupo.

A escolha predominante das cores vermelho e preto desempenha um papel essencial na construção da visualidade e na amplificação dos temas centrais da peça de Federico García Lorca. Estas cores, carregadas de simbolismo, contribuem para a criação de uma atmosfera intensa, que reflete a profundidade e complexidade dos conflitos internos das personagens.

O preto, tradicionalmente associado ao luto, à repressão e ao poder, é utilizado para destacar a atmosfera sufocante e autoritária imposta por Bernarda Alba sobre suas filhas. Esta cor domina o figurino, cenografia e até as máscaras, simbolizando a rigidez e a opressão da ordem patriarcal. Na casa de Bernarda, o preto representa a ausência de liberdade e a supressão dos desejos individuais, criando uma sensação constante de clausura e controle.

A cor preta também remete ao luto perpétuo que Bernarda impõe às suas filhas após a morte do pai. Este luto não é apenas pela perda do marido, mas também pela perda de suas próprias vidas e liberdades. O preto, portanto, encapsula o estado de morte em vida que as personagens femininas são forçadas a suportar, amplificando o tema da repressão e do controle.

O vermelho, por outro lado, simboliza a paixão, o desejo e a violência latente que permeiam a peça. É uma cor de intensa carga emocional, contrastando com o preto e destacando os momentos de tensão e conflito. Na montagem, o vermelho pode ser visto em detalhes do figurino e na iluminação, servindo para intensificar as emoções reprimidas e os desejos ocultos das personagens. O uso do vermelho também evoca a ideia de sangue e sacrifício, refletindo tanto a violência emocional quanto física que se desenrola na trama. É uma cor que sugere a presença constante de paixão e conflito, que apesar de ser reprimida pela autoridade de Bernarda, está sempre à beira de explodir. O vermelho, por sua vez, amplifica os temas de paixão e violência. Ele simboliza os desejos intensos e os conflitos que borbulham sob a superfície da repressão. É uma cor que sugere tanto a vida quanto a morte, a paixão e a destruição, refletindo a dualidade presente na obra de Lorca.

O cenário minimalista, predominantemente preto, cria um ambiente sombrio que simboliza a opressão e a clausura. Elementos vermelhos, como o tecido no fundo, quebram a monotonia e sugerem outras camadas de encenação, predominando a potência da musicalidade proposta por André Lu.

Nos figurinos, o preto domina os trajes das mulheres, refletindo sua submissão à autoridade de Bernarda e ao luto imposto. Pequenos toques de vermelho introduzidos nos trajes para simbolizar a paixão contida ou a rebeldia latente, como o colar de rosa de Adela, criando um contraste visual que destaca as tensões internas das personagens.

O uso dos leques de vários tamanhos emerge como um elemento visual significativo que acrescenta camadas de simbolismo e profundidade à interpretação da peça. Estes leques, além de sua funcionalidade prática, servem como ferramentas dramáticas que ajudam a expressar as emoções reprimidas, as dinâmicas de poder e os conflitos internos das personagens.

Esteticamente, os leques de vários tamanhos contribuem para a riqueza visual da produção. Eles adicionam movimento ao cenário austero, servindo como contrapontos visuais que quebram a monotonia da repressão representada pelo predomínio da austeridade. O movimento dos leques pode criar um ritmo visual que complementa a tensão dramática da peça, acrescentando uma camada de dinamismo à encenação.

A incorporação da personagem da Morte e o uso de um metrônomo são escolhas cênicas significativas que intensificam a atmosfera trágica e claustrofóbica da peça de Federico García Lorca, reforçando os temas de repressão, controle e inevitabilidade do destino.

A Morte traz à tona a natureza inevitável e opressiva da tragédia que aguarda as personagens de Lorca. Esta figura serve como um lembrete constante da mortalidade e do controle implacável que Bernarda exerce sobre suas filhas, encapsulando a ideia de que a repressão extrema só pode levar à destruição.

Dramaticamente, a Morte interage de forma silenciosa e sutil com as outras personagens, destacando momentos de tensão e conflito. Sua presença é utilizada para pontuar momentos de extrema dor na trama, como as mortes simbólicas ou literais das personagens, criando um senso de fatalismo e inevitabilidade. Um observadora passiva, um espectro que ronda a casa, aumentando a sensação de vigilância e medo.

O metrônomo, com seu movimento cruel e constante, representa a passagem implacável do tempo e o ritmo rígido e controlado da vida dentro da casa de Bernarda. Este instrumento simboliza a repetição monótona e sufocante das regras e restrições impostas pela matriarca, bem como o inevitável avanço para um desfecho trágico.

O som do metrônomo é usado para criar uma sensação de tensão crescente. Seu ritmo constante torna-se uma presença auditiva opressiva, lembrando o público da passagem do tempo e da inevitabilidade dos acontecimentos.

A presença da Morte e o metrônomo trabalham juntos para construir uma atmosfera de opressão e inevitabilidade, onde o tempo parece se mover lentamente, mas inexoravelmente, em direção à tragédia.

“A Casa de Bernarda Alba” pela Cia Os Satyros é uma montagem visualmente rica e complexa, que dialoga com as teses de Mikhail Bakhtin e as proposições de Federico García Lorca de forma inovadora. Através de uma narrativa visual poderosa e de uma construção de visualidade que subverte e questiona as normas tradicionais, o espetáculo oferece uma reflexão profunda sobre o poder, a repressão e a busca pela liberdade. Ao apresentar três elencos distintos, a produção não só homenageia a multiplicidade de vozes presentes no texto original, mas também convida o público a uma experiência teatral polifônica e dialogada, capaz de ressoar de maneira profunda e impactante.

Fonte: blog.bobsousa.com.br

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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