Como novas plataformas digitais e a criptoarte estão mudando as formas de expressão artística

por Eduardo Nunomura

Era 7 de março de 2020 e o ator Ivam Cabral, da Cia Os Satyros, encerrava a encenação do seu solo Todos os Sonhos do Mundo para uma plateia de 500 pessoas, no Cine Teatro de Cuiabá. Foi a última apresentação presencial. Mas dias após o início do isolamento social, a peça transformou-se em livesno Instagram. Na última segunda-feira 8 de março, às 21 horas, Cabral reestreou o monólogo em um inusitado formato, o teatro por áudio, no aplicativo Clubhouse, a mais nova onda do mundo digital. “Coloquei o celular num pedestal e fiz a peça em pé, como se estivesse no teatro. E curti a sensação de estar aqui falando com vocês”, afirmou à reportagem de CartaCapital, em bate-papo que se seguiu ao espetáculo.

Bem-vindos a um novo universo em que peças são transmitidas apenas em áudio, espetáculos viram fragmentos a serem caçados em vídeos curtos, álbuns musicais são gravados em sessões com os fãs e a obra de arte é vendida em criptomoedas. Tudo muito confuso para quem ainda tem a viva lembrança de só ir a um cinema, ao teatro, a um show de música ou a uma galeria de arte. A tecnologia vem ressignificando tudo isso. Novas plataformas digitais como Clubhouse, Twitch e Tik Tok, e mais a emergente criptoarte, são uma realidade para produtores culturais.

Ivam Cabral escreveu a peça em meados dos anos 2010, com a motivação de lidar com uma grave depressão. O boca a boca tomou conta desse espetáculo dramático e profundo, fundamentado no trabalho do ator. No palco não há música, som, luz ou figurino que tire o foco de sua fala. O ator e Rodolfo Garcia Vázquez, diretor da peça e cofundador da Cia Os Satyros, buscam agora atingir novos públicos pelo Clubhouse. “Entendemos que o teatro não é mais um lugar regional, da Praça Roosevelt. Estamos pensando em trabalhar aqui dentro, porque é uma plataforma muito interessante”, diz.

O Clubhouse é uma rede social de bate-papos apenas audiofônicos. Não há textos, emojis ou memes. Funcionam como clubinhos, com a vantagem de poder entrar e ficar só de ouvinte, em salas de assuntos variados. Um pouco antes da pandemia, a cantora e compositora Leesa, nascida Lisa Kalil, trabalhava no lançamento de Maná, seu segundo álbum, depois de Vitrais (2018). Mas problemas na distribuição das faixas fizeram o projeto ser adiado. Em janeiro deste ano, ela recebeu um convite para entrar na “nova rede social”. Lá reencontrou uma antiga amiga, Alexa Devi, e as duas tiveram a ideia de criar o House Teatro, uma leitura diária do livro A Volta ao Mundo em 52 Histórias, do inglês Neil Philip.

“Trouxemos o teatro para o ao vivo, que só acontece naquele momento. Dá um frio na barriga, porque estou criando os sons, as músicas, tocando os instrumentos, escaleta, piano, flauta, tudo na hora”, afirma Leesa. Ela e Alexa estão em São Paulo, e Michele de Paula, do elenco fixo, em Sorocaba. “Nos anos 1940, na época do radioteatro, ninguém sabia o corpo da pessoa, o que importava era se ela tinha talento e se conseguia respeitar o outro durante as conversas.” O Clubhouse conta hoje com mais de 6 milhões de usuários. As marcas, sempre de olho no potencial comercial das redes sociais, trabalham para entrar nesta nova plataforma.

Ganhar dinheiro é sempre uma necessidade para empresas e artistas, mas não sob os mesmos patamares. Não raras vezes, os criadores recebem bem menos do que quem mercadeja o produto cultural.

É por isso que os artistas estão de olho nas criptoartes, ou nas NFTs (non-fungible token, na sigla em inglês). E mais ainda no lançamento, em 5 de março, da primeira coleção NFT da história, pela banda de rock Kings of Leon. Ao lançar o álbum When You See Yourself, acessível nas plataformas de streaming, o grupo ofereceu também uma coleção de arte digital com 25 peças exclusivas e vendidas sobre um tipo de criptomoeda (o ethereum). Há itens, negociados na plataforma Yellow Heart, que vão de disco de vinil de edição limitada, capa alternativa a assentos cativos em shows da banda.

O princípio é o mesmo do bitcoin, uma moeda baseada na tecnologia da blockchain, totalmente rastreável e escassa, com a diferença de que a criptoarte negocia itens culturais, que podem ser arquivos, GIFs, fotografias ou artes digitais. Quem compra ganha um atestado de originalidade da obra, o que aparentemente soa despropositado em tempos da reprodutibilidade maciça da obra de arte, como anteviu o filósofo alemão Walter Benjamin. “A NFT não resolve a pirataria, mas soluciona a autenticidade”, explica o artista-programador Carlos Oliveira, o Vamoss. “O que muda é que a gente (artistas) não precisa mais atravessar todas as barreiras. A arte tradicional precisa ter um mercado querendo te contratar, um galerista que queira te exibir, o curador e o museu, também. Na NFT, o público vai reconhecer diretamente o seu trabalho.”

Vamoss, diretor de tecnologia da SuperUber, responsável pela direção de tecnologia do Museu da Língua Portuguesa, conseguiu vender sua primeira peça de arte digital, sobre o deus Janus, pelo preço equivalente a 140 reais na plataforma OpenSea. A obra está valendo 221 reais, na última cotação do ethereum. Mas nesse mercado da cripoarte também há obras supervalorizadas. Right Place & Right Time, do artista Matt Kane, foi vendida por mais de 100 mil dólares, em setembro. Agora o valor da arte digital de Kane, que muda conforme a oscilação dos bitcoins, passa dos 400 mil dólares.

O músico Marcelo D2 também está com sede de produzir, mas sua praia tecnológica é outra. Desde o início da pandemia, ele e outros artistas, como Criolo, Tropkillaz e DJs de todo o País, passaram a explorar a Twitch, uma plataforma de vídeos mais conhecida pelos jogadores de esportes eletrônicos. Distantes dos palcos, eles puderam se reaproximar do público por meio dessas transmissões pela internet. A principal diferença da Twitch em relação ao YouTube, Instagram ou Facebook é que ela facilita a comercialização de assinaturas.

Com mais de 80 mil seguidores, o rapper carioca decidiu inovar com a produção, edição e divulgação de seu álbum Assim Tocam os Meus Tamboresao vivo na Twitch. É um projeto que está sendo tocado há meses, e que premia os fãs não só com esses bastidores, mas também com a intimidade da casa de D2. Numa das transmissões, ele afirma que quer colocar um rap no disco, em parceria com novos talentos. “Tô a fim de fazer uma música com o Emicida. Ele tem uma ideia boa pra caralho”, afirma. Na nova composição, ele citaria sambas do Rio e Emicida, os de São Paulo.

A plataforma de vídeos curtos Tik Tok, febre entre adolescentes, é outra frente para os artistas. Na maioria das vezes, ela serve para “revelar” um outro lado, como faz o cantor superstar Justin Bieber.

Com mais de 20 milhões de seguidores, ele é um membro ativo do Tik Tok, apresentando os bastidores de shows e de sua vida pessoal. Nos dias 14 e 15 de fevereiro, ele fez nessa plataforma uma live de Journals, álbum de 2013. Teve mais de 4 milhões de visualizações. Desde o anúncio do #JournalsLive, ele conquistou 700 mil novos seguidores.

No Brasil, artistas famosos também ocupam o Tik Tok para participar de desafios e outras brincadeiras que entretêm o público. Mas há quem veja na plataforma outras possibilidades, como a Palhaça Catarina. A atriz Julia Bertolini, do grupo Praiaças, da Baixada Santista, decidiu fazer os vídeos curtos com mensagens inteligentes. “Ser palhaça já é revolucionário. E falar de política, mais ainda”, diz ela, que não perde a oportunidade de fazer troça de Jair Bolsonaro. “Alguns apoiadores dele me acham engraçada. Fui na linha de fazer brincadeiras, mas tentar conscientizar sem ser agressiva.”

Outra iniciativa na mesma clave é o espetáculo Pirata de Galochas. Com recursos da Lei Aldir Blanc, o grupo Galochas criou um espetáculo infantojuvenil no Tik Tok, onde cada ator, pirata ou não, está isolado na mídia social e se recusa a praticar a violência em nome do Estado. O grupo tem a prática do teatro ligado a movimentos sociais, atuando com os sem-terra e os sem-teto. “Ocupar o Tik Tok sempre foi por colocar conteúdo crítico em uma rede que não é tão crítica. Fazer produções que sejam divertidas, sedutoras, mas disputando conteúdo nesse espaço. Isso me parece bastante piratesco”, afirma Rafael Presto, responsável pela dramaturgia da peça.

Fonte: Carta Capital, 11 de março de 2021

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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