Muito já deve ter se falado e escrito sobre “A Arte de Encarar o Medo”, espetáculo virtual dos Satyros. Afinal, segundo o UOL, essa experiência já foi vista por mais de 15 mil pessoas desde sua estreia, em junho.
E se digo experiência é porque é exatamente isso. E se afirmo que muito já deve ter sido dito é por duas razões: ninguém assiste e fica impassível diante da peça e por que eu não quis ler nenhuma crítica antes de encarar essa bem sucedida inovação artística dirigida por Rodolfo García Vázquez.
Antes de começar somos instruídos sobre como utilizar a ferramenta Zoom, pela qual se transmite e se assiste ao espetáculo, afinal estamos aprendendo juntos a lidar com essa tecnologia. E as dicas são importantes para um melhor aproveitamento do que virá nos próximos minutos.
Pelo chat somos convidados a expor nossos próprios medos em época de pandemia e a citar, se quisermos, o nome de alguma pessoa que conhecemos e foi vítima dessa doença que nos assombra há tantos meses.
Meses que, no roteiro assinado por Vázquez e Ivam Cabral, tornaram-se anos; mais precisamente quinze deles ou exatamente 5.555 dias de quarentena. Uma período onde não é possível sair de casa de maneira alguma e onde já se perderam mais 130 mil vidas. Com exceção do tempo, o restante é real. Assombrosamente real.
A viagem se inicia com “Space Oddity” de David Bowie e, como Major Tom, embarcamos em uma odisseia de descobertas – pouco digeríveis – e muitas vezes assustadoras. Pessoas com maior sensibilidade – ou seja, todas que se propõem a assistir ao espetáculo – arrepiam-se de imediato. O elenco já tem o espectador na palma da mão. Ou em frente às múltiplas telas de um futuro aos nossos pés.
Cada participante da peça está em sua casa onde, graças à Direção muito bem realizada e aos elementos cênicos, parecem cenários “normais” em determinados quadros, como na cena do banheiro onde a mãe, interpretada por Sabrina Denobile, conversa com a filha sobre a escola que ela não conhece (uma sequência linda onde a Direção é notada pela maneira como é filmada no espelho e na marcação das atrizes) e no aniversário solitário da personagem de Júlia Bobrow, onde há um alívio dramático pautado no humor agridoce da cena. Em outros casos, a maioria restante, os cenários são distópicos.
Nessa segunda categoria, alguns espaços são claustrofóbicos e essa sensação nos invade no exato momento da nossa percepção que fazemos parte daquilo tudo. Estamos também na frente da tela, em plena quarentena, isolados e vendo nossos amigos e amores somente através do vidro frio.
Há cenas em que personagens tentam sair e desesperadamente correr até a casa de outro. A ação remete a filmes de suspense ou horror, como “A Vila” de Shyamalan ou “A Bruxa de Blair”. A comparação – ou recordação – se justifica pela forma como o medo é tratado. Em uma das minhas primeiras dramaturgias escrevi que o temor de não sabermos o que há atrás da porta pode nos impedir até mesmo de chegar até ela. É isso.
Posso dizer que fui um espectador privilegiado. Tive sensações e emoções muito particulares. Meu sentimento de horror e a imersão foram maiores no sentido de que conheço pessoas do elenco e me senti dentro do círculo virtual onde eles estavam. Chorei ao recordar os camarins do Espaço dos Satyros – onde tive momentos únicos – e seus espelhos na frente das paredes de pedras. E, claro, emocionei-me ao ver os fantasmas pela Praça Roosevelt deserta enquanto vagava sem rumo no pensamento, como cada personagem.
Em determinado momento o ator Ivam Cabral diz que há mais de um ano não consegue chorar pelas pessoas que morreram, os rostos que foram se apagando no meio dos números. E afirma que, sem chorar por elas não voltamos a nós mesmos. Para nós só se passaram alguns meses e já fomos capazes de perder essa capacidade. Nós e – literalmente – a possível torcida do Flamengo.
A trilha sonora marca cada cena de forma pontual e contribui para aquilo a que o espetáculo se propõe: expor o medo de cada um.
A peça já teve duas montagens no exterior: nos Estados Unidos e na África / Europa. São três elencos – atores e atrizes de diversos países em cada um deles – apresentando-se simultaneamente e aclamados pela crítica. Os ingressos estão disponíveis no site da Sympla.
Quando estreou, “A Arte de Encarar o Medo” suscitou discussões se era ou não teatro. Questões desnecessárias em minha opinião. É teatro, é videografismo, é cinema experimental, é arte visual, é arte virtual, é performance, é algo novo. E que precisa ser visto. É imprescindível assisti-lo para que se tenha a percepção desse tempo pelo qual ainda estamos passando.
E qual a função da arte senão expor a época em que vivemos e suas entranhas, como se guardasse mosaicos da nossa vida em um museu na parede da memória e nas multitelas que nos cercam?
Nos resta enfim esperar a primavera, parafraseando Cecília, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.
Cantemos alto quando deixarmos as telas e voltarmos a ver as vitrines coloridas de Chico para matar as saudades de tanta coisa boba ao lado dos fantasmas tecnológicos da Praça Roosevelt.
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