ACALANTO | A noite em que cantei para o vento adormecer

Acordei no meio da noite com um choro miúdo, um soluço entrecortado que se confundia com o som do vento. Era Guadalupe, minha pequena, buscando abrigo no meu peito. Nunca antes havia me acordado assim. Por um instante, fiquei sem saber se o que tremia era o corpo dela ou o mundo inteiro. Lá fora, a ventania gemia contra as janelas do 17º andar, e dentro de casa havia um medo antigo, desses que a gente reconhece de outro tempo.

Bernardo, o caçula, também se aproximou, sonolento, mas curioso, como se o vento chamasse por ele. Ficamos os três ali, espremidos entre travesseiros e edredons, tentando decifrar a linguagem dos uivos. Guadalupe tremia mais. Então acendi o abajur e, instintivamente, comecei a cantar. Talvez fosse uma tentativa de convocar a calma, talvez fosse só amor tentando fazer morada no meio da noite. Ela se enfiou debaixo do edredom, Bernardo segurou minha mão. E eu, sem perceber, voltei a ser criança.

De repente, a cena se confundiu com outra. A casa de madeira amarela, as janelas azuis, minha mãe nos acordando no meio da madrugada porque a chuva vinha forte e ela temia que o teto não resistisse. “Venham pra debaixo da mesa”, dizia. E lá íamos nós, seis filhos, a família inteira encolhida sob a mesa da cozinha, como quem busca refúgio dentro do ventre da casa. As goteiras caíam num balé de improviso, os trovões rasgavam o céu, e a gente rezava. Eu, menino, olhava para os rostos dos meus irmãos e sentia uma ternura que o medo não conseguia apagar.

Engraçado como o tempo dobra sobre si mesmo. Aquela casa de madeira virou o 17º andar. O barulho da ventania continua o mesmo, apenas trocou de instrumento. O gesto é o mesmo. Acolher o medo alheio, cantar para que o escuro se torne um pouco menos escuro. A infância é uma canção que a gente nunca esquece e que, um dia, sem perceber, acaba cantando para alguém menor, com a mesma urgência de amor.

Guadalupe adormeceu primeiro, o choro dissolvido entre minhas mãos. Bernardo logo depois. Eu fiquei ali, no silêncio que o vento deixou, com o coração cheio de lembranças, com a certeza de que não estava sozinho. Porque, no fundo, o que nos salva das tempestades não é a solidez das paredes. É o calor de quem se encosta na gente quando o mundo ameaça desabar.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1966

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