O dia que os irmãos Infâncio e Infância ameaçaram a Eunicinha, minha mãe

O Sete Voltas é exatamente a metade do caminho entre Ribeirão Claro e Jacarezinho. Zona rural, é cortado pelo rio Anhumas, nome do pássaro encantado que tem esporões nas asas e é conhecido também como unicórnio, e que a gente morria de medo deles porque corriam atrás da gente e, se pagasse, machucava feio. Parte da família do meu pai sempre viveu por ali e cresci convivendo muito com o lugar.

A tia Antonina era casada com o tio João, um homem de fala mansa, mas muito mansa mesmo. Demorava horas para contar uma história. Mas era tão espirituoso e simpático que prendia nossas atenções sempre que abria a boca para falar alguma coisa. Tia Antonina e tio João eram meus padrinhos de crisma e, durante toda a minha infância, me presenteavam com um porquinho nos meus aniversários, que eram abatidos sempre no final do ano, na época do Natal.

Passei muitas férias no Sete Voltas. E era sempre misterioso ver o dia se despedir, dando lugar à noite que surgia sempre cheinha de mistérios. Não havia luz elétrica na casa dos meus tios e a iluminação era produzida por velas e lampiões.

Por ali, viviam, em uma das propriedades da tia Emenegilda, os irmãos Infâncio e Infância. Eram gêmeos, nunca se casaram e viveram quase a vida toda na mesma casinha à beira do rio Anhumas. Quase a vida toda porque o Infancio, depois da morte da irmã, foi parar no Asilo São Vicente de Paula.

Quando a minha tia Emenegilda ficou pobre, ela passou a trabalhar, uma vez por semana, de maneira voluntária, na casa dos Infancios. Ela chegava cedo, fazia a faxina, cozinhava o almoço e trocava as roupas da cama dos dois, que sempre dormiram juntos. Sim, vocês leram corretamente. Só tinha uma cama na casa dos Infancios.

Nossa, tem tanta história dessa minha tia Emenegilda, que saiu até na revista Veja quando vendeu a sua olaria, que tinha se transformado numa fábrica de cimento, para o grupo Votorantim. Lembro até hoje, era uma matéria de página inteira com foto da tia e tudo o que ela tinha direito. Mas quis ficar pobre, a tia Emenegilda, tadinha, e passou o final de sua vida fazendo caridade, trabalhando uma vez por semana na casa dos Infancios.

Me lembro que a gente, criança, conspirava contra os Infancios. A gente era capaz de visitar a casa deles, toda vez que íamos à Sete Voltas, só para se certificar de os dois dormiam juntos mesmo. E, toda vez, a gente via a mesma cena: uma casinha pobrezinha de dois cômodos, cozinha e quarto, e… apenas uma cama!

Em seguida, toda vez, a gente saia dali, rindo sempre muito e especulando coisas. Que os Infancios eram filhos do demo porque se casaram entre irmãos, que o Infancio era curupira, que a velha Infancia era morta viva. Nossas, quantas histórias!

A verdade verdadeira dessa era que a tia Emenegilda gostava muito dos dois. Quer dizer, da dona Infancia eu não sei; mas do Infancio eu vi com meus próprios olhos. Minha mãe fazia camisas e calças pro Infancio, presente da tia Emenegilda que comprava os cortes de tecido nas Casas Pernambucanas. Mas o ápice das histórias dos irmãos aconteceram em uma noite.

Lembro como se fosse hoje. Meu pai era pedreiro e passou a minha infância toda trabalhando em São Paulo porque na minha cidade não tinha serviço pra ele. Então, numa noite, a gente já se preparava pra dormir quando ouvimos um barulho no quintal. Minha mãe era muito valente. Abriu a porta da cozinha e saiu correndo no escuro pra ver o que estava se passando. Eu não tive coragem de ir atrás da minha mãe. Mas o Claudio, meu irmão caçula, teve. Disseram depois, que viram dois vultos na escuridão que correram para um quartinho que a gente tinha no fundo do nosso quintal, onde meu pai guardava suas ferramentas. Minha mãe, então, pegou um martelo e umas estacas e uns pregos e pregou toda a porta do quartinho de bagunças do meu pai. Trancou tudo. Quando voltou pra dentro de casa, disse:

— Peguei! Amanhã a gente destranca essa porta e descobre tudo.

No dia seguinte acordamos muito cedo. Quando chegamos no quartinho de bagunça do nosso pai, a porta estava aberta. As pessoas que se esconderam ali tinham conseguido se safar. Minha mãe ficou louca da vida.

— Como conseguiram, tava tudo martelado?!

Mas os gatunos tinham deixado rastros. Dentro do quartinho de bagunças do nosso pai, encontramos uma blusinha amarela e a minha mãe reconheceu logo:

— É da Infancia!

Não deu outra. Minha mãe quis se encontrar com os irmãos Ifancios.

— Que salientes!

Lá em Ribeirão Claro ainda se usa muito essa palavra “saliente” para se dirigir a uma pessoa abelhuda, astuciosa.

Foi assim que saímos de casa, naquela manhã, dentro do camburão da delegacia de polícia. Sim, minha mãe foi até à delegacia, tava assustada a Eunicinha, minha mãe.

Foi, na verdade, uma das maiores aventuras que vivi na minha infância. Andar na corinthiana da delegacia. Sim, a gente chamava de corinthiana o camburão da polícia.

Quando chegamos na casa dos Infancios foi um alvoroço só. A tia Emenegilda estava lá, já era o tempo em que ela tinha feito voto de pobreza e era pobre de marré deci, tadinha.

— Fui eu quem pediu para o Infancio ir na casa da Eunicinha buscar o meu vestido e ele quis ir com a Infancia. Chegaram muito tarde e ficaram receosos de incomodar.

Minha mãe nunca acreditou muito nesta história da tia Emenegilda e isso foi tema de conversas da nossa vida toda. Ficou o mistério: o que os irmãos Infancios teriam ido fazer na nossa casa, de noite, naquele dia? E por que a tia Emenegilda encobriu tudo?

Antes de voltarmos para a nossa casa o policial quis saber onde estavam os irmãos.

— Dormindo, relatou nossa tia.

Quiseram tirar os nove, da prova. Minha mãe foi à frente, entrando no quarto dos irmãos. Eu fui atrás. Deitadinhos na cama, cobertos até a cabeça, lá estavam Infancio e Infancia dormindo feito anjinhos…

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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