A ceia de natal mais sustentável do mundo inteirinho

A comida sempre foi algo muito sagrado na minha família. Inclusive, sempre fizemos orações antes das refeições. Na casa do meu irmão Irineu, até hoje.

Na minha infância toda era comum plantarmos o que comíamos. E minha mãe, principalmente e desde sempre, fazia escambos de serviços. A vida era bem mais solidária. Era comum ela costurar para famílias que que pagavam seus trabalhos em café, arroz, feijão ou carne. Comum, também, fazer pão ou algo especial e distribuir entre as casas de amigos.

Nosso quintal era bem grande, onde tínhamos as nossas criações. Os porcos, para ocasiões especiais; as galinhas, para os domingos. Durante a semana, comíamos saladas e legumes, sempre com arroz e feijão. Mas em datas especiais, nossas refeições viravam verdadeiros banquetes, com muitas variedades de carnes e saladas e legumes e pratos especialíssimos. Nossos natais, então, eram cheios de fartura e tinha-se que comer muito, passar mal de tanto comer.

Até hoje é assim com o pessoal da minha família. Quando sabem que vou chegar, já me avisam que vão matar uma leitoa, um cabrito e que irão preparar mais um monte de coisas que eu gosto. Quando chego, é um tal de comer isso e experimentar aquilo, que só de pensar já começo a salivar.

Nessa época, então, é uma loucura. Muito tempo antes já começam a preparar o cardápio e as toalhas e os panos de pratos e os guardanapos. Neste ano não foi diferente, embora não fossemos passar o Natal juntos, o assunto sempre era comentado em nossos grupos de WhatsApp.

Mas eu fiz uma coisa muito feia. Eu menti para a minha irmã Irani e agora ela vai saber de tudo, quando ler este post. Menti por uma boa razão, para que ela não se preocupasse comigo. Primeiro Natal longe da família e todo mundo muito aflito com o jeito que íamos enfrentar a noite mais triste de nossas vidas. Explico.

Aqui, em nossa casinha no meio do mato, neste ano, passamos o Natal mais incrível do mundo. Mas diferente, em todos os sentidos. Imaginem uma ceia sustentável, econômica, na melhor acepção da palavra. Porque economia, li agora aqui na web, “é um fenômeno relacionado com a obtenção e a utilização dos recursos materiais necessários ao bem estar”.

Aconteceu que, quando vimos, já era dia 24 e não tínhamos nem pensado em ceia, nada. Já eram mais de oito horas da noite quando o Rodolfo se lembrou:

— Ih, hoje é dia 24, dia de ceia, o que comer?

Me lembrei que no grupo de WhattsApp aqui do bairro havia um anúncio: 1 peru, 1 copa de lombo recheada com farofa de bacon e azeitonas, 1 kg de salpicão de frango e 1 kg de arroz à grega, tudo por R$ 150,00. Respondi ao Rodolfo que eu faria o pedido e que o problema estaria resolvido.

Entrei em contato com o pessoal do anúncio e no meio da combinação comecei a achar tudo muito exagerado. O que íamos fazer com tanta comida, se somos só nós dois aqui em casa?

— Ah, Rodolfo, tá me dando um aperto aqui. Essa comida vai toda pro lixo amanhã, mesmo que a gente coma no almoço. É muita coisa!

Ainda tentei falar com a moça que me atendia se não era possível nos vender meio peru, meia copa de lombo, meio quilo de arroz à grega e meio quilo de salpicão. Seria mais do que suficiente para nós. Mas não houve jeito, ou 1 peru, 1 copa de lombo recheada com farofa de bacon e azeitonas, 1 kg de salpicão de frango e 1 kg de arroz à grega ou nada feito.

Rodolfo também achou exagerado e propôs cozinhar com o que tínhamos aqui. Resultado: batatas recheadas com o que ele encontrou na geladeira e pela frente, e lá fomos nós para a nossa ceia de Natal, com apenas um único prato.

O problema é que, no dia de Natal, a Irani, sempre muito preocupada com a gente, quis saber como havíamos passado a ceia de Natal. Menti:

— Nossa, passamos superbem. Uma mulher aqui no bairro nos forneceu um verdadeiro banquete: 1 peru, 1 copa de lombo recheada com farofa de bacon e azeitonas, 1 kg de salpicão de frango e 1 kg de arroz à grega. Uma delícia!

O que, é evidente, deixou a minha irmã tranquila. Mas, juro, menti por amor, para que não ficasse preocupada com a gente. Porque, por aqui, as coisas estão ótimas, tranquilas mesmo. Dá até pra fazer de conta que tem sol lá fora e que o mundo respira feliz.

Agora, então, de férias, os dias chuvosos têm alegrado as nossas almas e sobra tempo pra ler, pra assistir a filmes no Netflix, dormir bastante e se desligar do mundo. E, nessa vida aqui, as batatas recheadas são as nossas maiores delícias. Com tudo isso, quem vai precisar de 1 peru, 1 copa de lombo recheada com farofa de bacon e azeitonas, 1 kg de salpicão de frango e 1 kg de arroz à grega?

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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