ENTRE ESPINHOS
Tabus sociais, como violência doméstica e pedofilia, são tratados com audácia pelo ainda restrito universo artístico
por Mauro Morais
Entre a flor e o espinho, alguns artistas se agarram à parte pontiaguda. Escolhem bradar “tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor”, dos versos de Nelson Cavaquinho, a fim de fazer uma arte que consideram “verdadeira e original”. Apesar de tabus para a sociedade, temas como violência doméstica, pedofilia, aspectos inusitados do sexo, drogas, entre muitos outros, são tratados com audácia pelo universo artístico, cuja intenção primeira é naturalizar discussões acerca do que ainda é silêncio. Cancelada no início do mês pelo desembargador Fortes Barbosa, da 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, a estreia do espetáculo “Edifício London”, inspirado no Caso Nardoni, vira alvo de polêmica ao jogar luzes sobre as motivações que levam alguns artistas a se renderem aos assuntos espinhosos, abrindo mão da tendência, cada vez mais dominante no país e no mundo, de entreter por meio da cultura.
Encenada pelo grupo teatral Os Satyros, a peça escrita pelo dramaturgo Lucas Arantes é uma das mais alinhadas à tragédia dentre a dezena de produções do autor, que partiu dos dramas existenciais até chegar ao misto de clássico com contemporâneo, utilizando como referências o mito da Medeia, o texto shakesperiano “Macbeth” e o jornalismo diário. “Quem leu o texto sabe que não se trata da história do crime. Todo o tipo de tragédia já foi discutida exaustivamente”, defende o editor Lau Baptista, referindo-se a tramas conhecidas, como a tragédia grega “Édipo rei”, de Sófocles, na qual Édipo mata o próprio pai e se casa com a mãe. Responsável pela Editora Coruja, que no ano passado publicou “Edifício London”, Baptista se diz surpreso com o que chama de censura e considera ser “um resquício da ditadura militar”. Presente na pré-estreia do espetáculo, ocorrida em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, o editor diz não ter presenciado qualquer manifestação de choque.
A ação, movida pela mãe da menina Isabella, Ana Carolina de Oliveira, reivindica o direito de personalidade, que prevê a preservação da dignidade humana, questão debatida com ânimos exaltados nas redes sociais. Segundo o advogado de defesa da peça, Dinovan de Oliveira, o caso agora tramita em segredo de justiça e o autor não pode falar sobre a peça, sob pena de contrariar a ordem judicial. Bastante constrangido, Lucas Arantes conversou com a Tribuna, revisando sua carreira e as referências que a compuseram, sem tratar da mais recente produção. “O teatro é uma forma de organização do luto. O palco vê a vida de uma forma ampliada”, defende ele.
Nas prateleiras de literatura de não-ficção, “A prova é a testemunha”, da pesquisadora e especialista em criminologia Ilana Casoy, relata os bastidores de um julgamento que mobilizou todo o país. Ao lado do promotor Francisco Cembranelli, Ilana acompanhou a sentença que indiciou o pai e a madrasta de Isabella. “Quando apresento fatos não posso ser interpretativa”, explica, comentando que lê todo o processo criminal antes de acompanhar um dos lados de cada caso. Atualmente, a escritora se atém a um livro sobre o Caso Rugai, defendendo a inocência do condenado. “O envolvimento não dá para ser parcial. É sempre total”, aponta, dizendo que já teve contato com muitas das famílias de vítimas sobre as quais pesquisou. “Tudo que faz refletir eu acho bom. Não gosto de qualquer tipo de censura. Mas a justiça existe para decidir quando há ofensas ou não”, comenta, referindo-se ao espetáculo.
Sucesso de crítica e público, o espetáculo “Luis Antônio-Gabriela”, de autoria e direção de Nelson Baskerville, parte de um drama pessoal para revelar a força da linguagem teatral. Encenada pela paulista Cia Mungunzá de Teatro e seus seis atores, a peça conta a trajetória de vida de Luís Antônio, que ainda jovem violentou o irmão Nelson e foi expulso de casa pelo pai. Num percurso de traumas e mergulho no submundo, o rapaz se torna Gabriela, uma travesti conhecida nas ruas de Bilbao, no País Basco. “Acho que fiz a peça porque a cena do abuso nunca saiu da minha cabeça”, emociona-se Baskerville. “Uma sociedade não pode ter nenhum canto escuro em que a arte não possa chegar. E nessa peça eu falei comigo que não podia ter um canto escuro onde as agressões continuavam a me atormentar”, discursa.
Cúmplice de um reencontro que não aconteceu, o público é confrontado com fortes imagens que recriam toda a violência contida na história, tratadas com delicadeza pelo diretor que nunca mais viu o irmão, acometido pelo vírus do HIV e morto em território brasileiro, próximo de uma irmã que o resgatou da Europa. “Me exponho muito mais quando digo: eu abandonei o meu irmão”, aponta Baskerville, corroborando o lirismo das cenas em que o sexo é apresentado com crueza, o que surpreende a plateia ao recusar qualquer vulgaridade. “‘Luis Antônio-Gabriela’ causa comoção porque acende uma luz para um lugar onde as pessoas não queriam olhar”, completa o autor, que finaliza para esse ano um documentário baseado na peça e assinado pelo cineasta Evaldo Morcazel.
Com o mesmo objetivo de chamar atenção para uma realidade dolorosa, a escritora Hilda Hilst publicou em 1990 “O caderno rosa de Lori Lamby”, primeira obra de sua trilogia erótica, na qual expõe, na voz de uma menina de apenas 8 anos, memórias de uma vida sexual iniciada pelos pais. Recebido com hostilidade pela classe intelectual, com o passar dos anos o livro se tornou um clássico. De acordo com Olga Bilenky, amiga da escritora e administradora da Casa do Sol, antiga residência de Hilda, a obra provocou algumas inimizades e muita polêmica na época, mas provou o espírito vanguardista da autora. “Ela ficou espantada com amigos esclarecidos que se mostraram tão conservadores. Mas esse enfrentamento foi tornando-a cada vez mais livre”, afirma Olga.
Alvo de uma das maiores polêmicas envolvendo as artes plásticas brasileiras em 2012, a fotógrafa norte-americana Nan Goldin também foi apedrejada por envolver infância à temática sexual. Recusada pelo Oi Futuro, a exposição “Heartbeat”, exposta no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, exibia flagrantes de nudez, sexo explícito e uso de drogas, em registros feitos entre os anos 1970 e 2000, quando a artista transitava pela cena underground de Boston e Nova York. “Em tons trágicos na maioria das vezes, Goldin, contudo, supera a realidade crua e a danação de seus retratados com um lirismo impressionante, pois que modula os sentimentos da dor e da morte com delicadeza, com introspecção e humanismo”, defendia a curadora brasileira Ligia Canongia em texto para a mostra.
Popular por suas letras repletas de palavrões e alusões ao sexo e às drogas, o grupo Raimundos, apesar de lançar mão de assuntos polêmicos em suas produções e ser censurado por isso, defende suas músicas como uma brincadeira. “O Raimundos é uma conversa de amigos. Não falamos para chocar, para ser gratuito. Mas sabemos que existem locais e horários para o que fazemos”, discursa o vocalista Digão. Atuando no cinema, Cláudio Assis, segundo a crítica especializada, tem compartilhado do mesmo cuidado, já que seu último filme, “Febre do rato”, destoa dos dois trabalhos anteriores – “Baixio das bestas” e “Amarelo manga” -, que usavam e abusavam de uma linguagem menos poética e muito mais visceral, mergulhada nas profundezas do submundo nordestino.
Para o professor da Faculdade de Comunicação da UFJF Potiguara Mendes, a arte não deve ter limitação do que vai tratar, esses limites fazem parte do público, que decide ou não fruir uma obra. “Normalmente a arte é para problematizar e não para solucionar”, reflete ele, que indica a leitura de “O caderno rosa de Lori Lamby” em uma das disciplinas que ministra, como forma de possibilitar o contato dos alunos com um tema pouco tratado e, principalmente, sob outra ótica. “A discussão é o caminho para a solução”, reforça Ilana Casoy. Segundo Nelson Baskerville, é urgente que a arte aponte as interferências das paisagens. “A função do artista é ser imperfeito. A arte também é um revigorante, um fortificante. Ela também deve incendiar”, diz, para logo completar: “A arte ajuda a admitir o feio, ela mostra o real e faz com que você extraia o belo disso. Por mais que seja cruel, ela sublima”.