Tenho pensado no que nos move, ou melhor, no que nos desmonta por dentro. A palavra “subconsciente” tem voltado com insistência aos meus ouvidos – e não de forma serena, como um sussurro do passado freudiano, mas como um tropeço repetido, uma reincidência ignorante. Vejo vídeos no Instagram – como todos temos feito –, e lá está ele, um professor de interpretação que também é ator, derramando certezas sobre o ofício que deveria ser, acima de tudo, dúvida.
Ele fala com convicção. Cita os mestres do teatro sem hesitação e sem atualização. Fala de Stanislávski como quem recita um versículo e invoca Artaud como se o poeta tivesse deixado uma bula, uma receita infalível para a atuação. Não deixou. Artaud escreveu com o corpo em chamas, com a garganta inflamada de mundo. Seus textos são gritos, não métodos. São rastros, não manuais.
Mas o rapaz insiste. Chama de “subconsciente” o que Freud, já em 1900, chamou de “inconsciente”. E o faz como quem pretende abrir as entranhas da arte com uma chave de fenda cega. A tradução brasileira traiu Freud nesse ponto, é verdade. Mas já sabemos disso há décadas. E insistir no erro é mais que desatenção: é recusa de escuta, esse dom tão essencial a quem pisa num palco.
Vejo o moço julgar atrizes, principalmente, e atores da televisão com o mesmo rigor com que analisaria uma cena de Tchékhov, como se não houvesse diferença entre palco e câmera, entre a vibração da presença e o detalhe do close e do trabalho do editor. E é justamente aí que mora o engano. Ele cita os mestres do teatro como se seus escritos fossem manuais universais, válidos para todas as linguagens. Mas não são. Stanislávski não escreveu para a televisão. Tchékhov não pensou em teledramaturgia. São territórios distintos, com demandas próprias, e aplicar os métodos de um ao outro é como usar uma bússola no fundo do mar. Pode até apontar alguma direção, mas dificilmente se chega a um lugar verdadeiro.
O problema não é só teórico. É político, poético, ético. Quando o erro de vocabulário esconde um erro de escuta, criamos intérpretes que falam sem corpo, ensinam sem dúvida e condenam sem ternura. A arte do ator é feita de buracos, entrelinhas, demoras. E o inconsciente – não o tal do “sub” – é sua matéria escura.
Freud redesenhou o mundo com suas tópicas. Primeiro, com o consciente, o pré-consciente e o inconsciente. Depois, com o ego, o id e o superego. Um novo mapa do ser, ainda em disputa. Enquanto isso, o teatro também se reinventava: Tchékhov escrevia silêncios; Stanislávski tentava nomear as forças ocultas da presença. E ambos sabiam, mesmo sem dizê-lo, que o que move o ator não se deixa traduzir tão fácil.
É por isso que vídeos como os desse rapaz me incomodam tanto. Porque, por trás da arrogância e do desprezo, há uma pedagogia da simplificação. E ensinar arte com fórmulas prontas é como ensinar a sonhar com despertadores. Não se ensina um ator a sentir. Ensina-se, com sorte, a escutar o que pulsa entre o gesto e a fala, entre o ego e o id, entre a memória e o susto.
No fim, penso que esse rapaz faz mal não só à arte do ator, mas à possibilidade mesma de pensar. De pensar com o corpo. De pensar com o tempo. De pensar com Freud e com Tchékhov, com Artaud e com a televisão. Porque o verdadeiro ofício do ator não é demonstrar. É abrir-se ao que escapa. Ao que se cala. Ao que se arrasta pelos subterrâneos da cena – onde, aliás, mora o inconsciente. Não o “sub”. O de verdade.