A dama pândega
Aos 78 anos, Maria Alice Vergueiro segue fiel à iconoclastia
Na sala de estar, algo destoa dos títulos que poderia ostentar a moradora quatrocentona, pentaneta do senador Nicolau de Campos Vergueiro, cafeicultor e um dos mais importantes políticos do Império, cujo nome indica ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Acima de um pequeno retrato de seus avós, herdeiros dos barões de Antonina e Ibicuí, a atriz, diretora e pedagoga teatral Maria Alice Vergueiro privilegia em grandes pôsteres a memória dos dramaturgos Samuel Beckett e Bertolt Brecht.
Se a postura corporal e a impostação vocal de grande dama, tão apreciadas nos palcos, podem ser creditadas à educação aristocrática, esta, no entanto, não lhe serviu para proporcionar estabilidade econômica e lhe dar maior conforto em situações como a do último mês, quando, aos 78 anos, submeteu-se a delicada cirurgia cerebral. Com a morte de sua mãe, em 2011, foi suspensa a pensão que também a mantinha e, à exceção de um colar de pérolas relíquia, as joias de família foram vendidas. Ante a hipótese de deixar seu endereço tradicional, a atriz pondera: “Sou uma senhora de Higienópolis, não me habituaria em outro lugar, e ao menos neste prédio me tratam como artista-celebridade”. Sua subsistência e a manutenção da saúde devem-se hoje à atenção dos filhos, bem como do ex-marido, promotor público do qual se separou em 1962 para, em seguida, subir ao palco dirigida por Augusto Boal em A Mandrágora. “Meus queridos me chamavam de irresponsável por eu não ter nem aposentadoria, mas agora resolveram me aturar”, ironiza.
A cirurgia acarretou uma infecção hospitalar, da qual se recupera, mas a potência vocal, que temia perder (já superou câncer de garganta), não foi afetada. Tampouco a contumaz iconoclastia, que lhe tem granjeado admiração da juventude nos últimos anos. “Claro que gravaria de novo o Tapa na Pantera”, diz, sobre o vídeo de 2006 no qual faz piadas com seu hábito de fumar maconha (desde o fim dos anos 1960) e que contabiliza mais de 6,5 milhões de visualizações. À época, Maria Alice detectara a doença e sabia que a erva em seu famoso cachimbo é adotada como terapia científica por liberar dopamina, o neurotransmissor cuja carência está associada ao Parkinson. “Está na moda ser a favor, mas acho bom para uma vida mais liberta. A criminalização da droga não leva a nada, é hipocrisia.”
A popularidade a partir do vídeo deu-lhe dinheiro apenas para levantar a produção da peça As Três Velhas, do chileno Alejandro Jodorowsky, na qual dirigiu e atuou nos últimos três anos em cadeira de rodas (por artrose nos joelhos): “Ele foi sedutor quando leu tarô para mim, disse que me traria fama e dinheiro, só que não veio nos assistir”. Se não conseguiu se pagar, por problemas burocráticos com as leis de incentivo, a montagem rendeu-lhe troféus, como o de “Personalidade de 2012”, oferecido pela SP Escola de Teatro, que neste ano a convidou para dar aulas.
Na escola mantida com verbas estaduais Maria Alice aplica o “catecismo” anarquista e semiapócrifo Baderna TAZ – Zona Autônoma Temporária e à turma de 25 alunos propõe a colaboração interativa. “Também compareço a reuniões da classe teatral sobre o atual momento, porque ainda acredito no ser humano e gostaria de assistir a uma real mudança política.” Entre seus pares, a atriz é lembrada como “a velha dama indigna” – a peça de Brecht sobre uma idosa que abraça prazeres, por ela interpretada em 1988.
Diretor da SP Escola desde a fundação, em 2010, o ator Ivam Cabral frisa que a atriz é pedagoga de formação. Foi a criadora da cadeira de Pedagogia Teatral na Escola de Comunicações e Artes da USP, nos anos 1960, e antes lecionou a disciplina na Escola de Aplicação da mesma universidade. “Não concebo que uma profissional com esse histórico chegue aos 80 anos abandonada e sem poder produzir seus projetos, em parte por não estar na mídia televisiva. As secretarias de Cultura e o Sesc precisam se responsabilizar por figuras como ela”, diz Cabral.
O “histórico” implica colaborações com momentos-chave do teatro brasileiro: em 1971 participou de O Rei da Vela, entre outras produções antológicas do Teatro Oficina, e em 1977 criou o Teatro do Ornitorrinco, com os teatrólogos Luiz Roberto Galizia e Cacá Rosset, quando também ganhou o Prêmio Molière (por A Mais Forte, de Strindberg). “Foi a professora da Escola de Arte Dramática da USP Maria José de Carvalho quem ‘cravou’, quando frequentei seu curso de dicção: ‘Você é uma atriz!’”, lembra Maria Alice.
As fortes personalidades das duas foram reunidas no teatro apenas uma vez, em cerimônia de inauguração do Instituto Cultural Itaú, em1992, quando o banqueiro e ex-prefeito Olavo Setubal ouviu-as dizer demolidores versos de Juó Bananère. Situação só comparável a uma apresentação do Ornitorrinco de músicas de Kurt Weill no elitista Clube Paulistano, na década de 1980, quando a atriz viu parte da plateia desabalar para fora do salão, após ela recitar versos brechtianos de morte à burguesia.
Para cumprir “a meta de viver para ver a Copa de 2014”, espera finalizar, com a escola teatral, um espetáculo que conjuga as peças Fando e Lis, de Arrabal, e Fim de Jogo, de Beckett, ambas com personagens centrais em cadeiras de rodas, que ela talvez interprete: “É um projeto ousado, o primeiro no formato ‘residente’ da escola, e no qual aplico o método Pândega, que adaptei do Teatro Pânico de Arrabal. Em julho apresentamos a primeira parte do processo e em breve revelaremos outras duas etapas, antes de subir aos palcos”.
Fonte: Carta Capital, 4 de outubro de 2013