por: Majô Levenstein
Não se deixe enganar pelo clima de circo e palhaçada que envolve os minutos iniciais da peça Cabaret Stravaganza, em cartaz no Espaço dos Satyros 1, no Centro da capital paulista. Embora tudo seja plasticamente bonito, bem iluminado, com figurinos caprichados, o retrato que será pintado ali, no que resta dos 90 minutos totais da montagem, é de um mundo muito, muito feio. Imundo até.
Sempre achei (e digo isso sempre que posso pra ele) o diretor Rodolfo García Vázquez um gênio, mas desta vez ele ficou um tantinho louco (mas, afinal, todo gênio tem um pouco de louco e vice-versa, certo?). Explico: no processo de criação do espetáculo, ele pediu para que cada ator trouxesse para o palco algum trauma, algo de sua própria experiência de vida que “acelerasse seu coração”. Daí que, bem diante da plateia, num exercício de exposição que deixaria qualquer reality show com cara de Telecurso 2º Grau, atores falam de frustrações, dores, amores, doenças, tristezas, enfim, passagens de sua trajetória que deixaram marcas, por vezes, cicatrizes.
E que ninguém pense que se trata de um exercício narcisista, no qual o ator se porta como o sujeito mais machucado do mundo e a plateia se cansa de seu papel de coitadinho. Ninguém é coitadinho ali. E ninguém sai imune diante dos depoimentos. Fica impossível se manter impassível, por exemplo, perante o ator Henrique Mello relembrando da infância e do violento pai, um caminhoneiro por quem ele torcia para que sofresse algum acidente na estrada ou tivesse um infarto fulminante ao volante. Você chega a ter pena do cara, mas imediatamente o sentimento é transformado em medo, já que o ator passa a descrever como seria se ele, munido de uma arma, acabasse se tornando o autor de um atentado contra o público ali sentado.
Também não pense que ficará ali, na plateia, ouvindo uma verborragia sem-fim. Na cena de Julia Bobrow e Cléo de Páris interpretando um casal que tenta se separar, não há uma só palavra trocada entre as duas. Imagino que a história ali encenada, em poucos minutos, rendesse um filme francês daqueles com horas intermináveis de diálogos. Lá, não. Como prova de que, em certos momentos, as palavras são totalmente desnecessárias.
Uma cena, protagonizada em partes espaçadas, pela atriz Marta Baião, que interpreta uma mulher cuja profissão é a de “enxugar gelo”, estava me incomodando. Até que, em sua conclusão, mostrou-se como uma das mais belas do espetáculo.
Ivam Cabral, o ator principal e fundador da companhia ao lado de Rodolfo García Vázquez, também está ali. Dele senti a dor mais profunda do espetáculo, talvez por ter assistido à peça no dia que marcava sua despedida do elenco (ele terá de se ausentar por um tempo do projeto) e por ser de sua boca que ouvimos sobre casos de suicídios e tragédias afins que se passaram no entorno da Praça Roosevelt, onde a Companhia Os Satyros mantém sua sede. É por Ivam também que ficamos sabendo que Cabaret Stravaganza é dedicado a Alberto Guzik, também membro da trupe, que morreu em junho de 2010, vítima de câncer.
E é por tudo isso que acho que Rodolfo García Vázquez “perdeu o juízo”. Não sei como ele conseguiu controlar o elenco, depois de levar a todos a uma exposição tão nua e crua de suas vidas. Um processo que, se não fosse muito bem conduzido, poderia levar a trupe a um colapso coletivo.
No final do espetáculo, conversei com alguns dos atores, que às vezes diziam sentir o público pouco participativo, sem rir… Meus caros, Cabaret Stravaganza não foi feito para fazer ninguém rir. O retrato pintado ali é de um mundo, como disse, muito feio, sujo, solitário, onde a vida online tornou-se muito mais interessante do que a real (como se isso, em sã consciência, fosse possível). É uma peça para ser assistida e refletida no mais absoluto silêncio, ao contrário do que Ivam Cabral e sua trupe tentam transmitir no início da montagem.
Ah, Cabaret Stravaganza também tem muitos recursos de computação, uma profusão de iPads, vídeo-instalações, mas, sinceramente, tudo não passa de acessório… Para mim, trata-se do ápice da companhia, mas acho que nem eles se deram conta disso.
Fonte: Cesar Giobbi, 19 de abril de 2012