Reinvenção na maturidade está no centro de livro póstumo de um dos grandes nomes da crítica teatral no Brasil

por Dirceu Alves Jr.

Romance “A estátua de sal de Sodoma”, de Alberto Guzik, faz referências ao meio teatral, jornalístico e acadêmico

Três histórias se entrelaçaram para resultar em “A estátua de sal de Sodoma”, romance póstumo do jornalista, dramaturgo, diretor e ator Alberto Guzik (1944-2010), que é lançado em parceria da SP Escola de Teatro e da Editora Urutau. A primeira é aquela retratada na ficção, a jornada de um crítico e professor de teatro que, abatido com o desfecho de um longo casamento, se aproxima de uma aluna e aspirante a atriz. A paixão, entretanto, em vez de lhe trazer alívio, o joga de vez em uma crise existencial.

A segunda é a trajetória profissional de Guzik, nome de grande relevância da crítica teatral brasileira entre as décadas de 1980 e 1990, profundo conhecedor do universo desenhado na trama, que transita entre os bastidores do meio artístico, a universidade, o jornalismo cultural e os tipos comuns a esses círculos. O autor é capaz de transformá-los em personagens com humanidade para que essa ambientação não restrinja o interesse e tampouco deixe a leitura presa a estereótipos.

Por fim, existe um caminho feito pelo livro, concluído pelo autor – morto devido a um câncer no estômago – até chegar ao público, contado no prefácio e no posfácio. Antes de se internar para a operação que culminaria em sua morte, Guzik, aos 66 anos, mandou dois e-mails com o texto finalizado.

Um deles foi endereçado ao dramaturgo e diretor Aimar Labaki e outro ao ator Ivam Cabral, que é um dos personagens da trama fictícia, entregando-lhes a missão de publicarem o romance. É difícil desvincular essas camadas porque não faltam sugestões de inspiração biográfica mesmo que seja evidente a modificação de fatos e até quem sabe o gênero dos personagens.

O entendimento do prefácio e do posfácio abre caminhos para observar que muito de Guzik aparece em uma livre construção de Fernando, o crítico e professor de teatro do enredo. O protagonista já passou dos 50 e, pela primeira vez, viaja no fim de ano sem a companhia de Ana, com quem vive há três décadas e tem dois filhos.

Em Nova York, passeando por um museu, ele tem a atenção capturada pelo quadro “Gato e Pássaro”, de Paul Klee (1879-1940). A imagem lhe desperta sensações tão fortes como as que serão vividas no ano que se inicia, que incluem um infarto, a separação de Ana, uma reportagem de grande repercussão, a paixão por Lucila e o encontro com um diretor de prestígio internacional, Pedro Veredas.

A narrativa de “A estátua de sal de Sodoma” se passa na segunda metade da década de 2000. Sobram citações de uma efervescente praça Roosevelt daquela época, capitaneada pela Cia. de Teatro Os Satyros; das encenações do Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa (1937-2023); ou até da geografia de pontos paulistanos, como a Vila Madalena ou a avenida Sumaré.

Diante de todo esse verniz, “A estátua de sal de Sodoma” se sobressai, no entanto, por mostrar a crise de um homem maduro que, em breve, envelhecerá desamparado pelo mundo que construiu ao longo dos anos. O casamento se desfez e o novo namoro revela-se traumático. As redações e o meio acadêmico, responsáveis por seu sustento, parecem na iminência da extinção diante das transformações da época.

Fernando, no entanto, esboça como saída uma aproximação do teatro não somente por meio do jornalismo ou da universidade. Esse é o ponto mais evidente de conexão entre o protagonista e o autor. Guzik, formado pela Escola de Arte Dramática (EAD) em 1966, deixou a carreira artística em suspenso por quase quatro décadas.

Voltou aos palcos em 2003 como um dos intérpretes da peça “Horário de Visita”, escrita por Sérgio Roveri, e, na sequência, se juntou à Cia. Os Satyros, participando de peças como “A Vida na Praça Roosevelt”, “Transex” e “Monólogo da Velha Apresentadora”.

Sob essa perspectiva, “A estátua de sal de Sodoma” deixa de ser um romance melancólico para se tornar algo mais solar, próximo a uma reinvenção da maturidade. Fernando desenha uma nova vida à beira dos 60 anos, ampliando sua rede de possibilidades – caminho semelhante ao adotado pelo autor em seus últimos anos. Guzik, lá por volta de 2008 e 2009, já ensaiava então um recorte da atualmente muito recorrente autoficção para deixar o leitor, no mínimo, intrigado.

O livro está disponível para download gratuito no site da SP Escola de Teatro (tinyurl.com/2y84u7ap), e a primeira edição física, de 1.000 exemplares, pode ser retirada também gratuitamente nas unidades da escola no Brás e na praça Roosevelt. O livro impresso está previsto para chegar às livrarias nos próximos meses.

A estátua de sal de Sodoma
Alberto Guzik
Selo Lucias/Editora Urutau, 360 págs.

 

Fonte: Valor

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