REFLEXÃO | Uma vida em muitas vidas

Dez anos atrás, nesta data, eu anunciava no Facebook o meu “retorno” ao teatro como ator, depois de dois anos afastado dos palcos. Deu aperto no coração ao me lembrar dessa história, hoje. Olhando em retrospectiva, vejo que foi um dos momentos mais difíceis da minha vida.

Entre 2009 e 2011 tudo aconteceu. Inauguramos a SP Escola de Teatro, perdi a minha mãe, o Alberto, alguns outros amigos muito queridos e, como se não bastasse, descobri um hemangioma cavernoso intramedular no cérebro. Sim, o nome descreve exatamente o horror desta doença que acometeu o nervo ocular do olho direito, me fazendo perder a visão deste olho.

Print de um post no Facebook, exatos 10 anos atrás

Mas como nem tudo são tristezas, nesse período eu também descobri duas coisas que mudariam a minha vida pra sempre: Parelheiros e Cacilda, a minha mais linda.

Com essas tristezas todas eu encontrei a solidão. Não pela primeira vez, mas de uma maneira aterradora. Foi um período em que fiquei muito introspectivo, vivendo em Parelheiros pelo maior tempo que conseguia. E trabalhei muito também porque foi o período de construção da SP Escola de Teatro. Como estava na direção executiva do projeto, coube a mim desenhar todas as ações da instituição; solitário, na maioria das vezes.

Quem vê a SP hoje não imagina a quantidade de trabalho que deu para estruturar toda a sua majestosa organização. Porque, justiça seja feita, a tarefa de dividir em departamentos, em projetos, não foi algo tão horizontal assim. Porque tem um momento que, pela sua função, você precisa arregaçar as mangas e colocar as mãos na massa. Foi o que fiz. Porque sonhar é uma coisa, realizar é outra, em oposição, completamente diferente.

Mas tem poesia nisso tudo também, claro que tem. Por exemplo, duas ações que fazemos até hoje na SP Escola de Teatro que tenho o prazer de revelar agora foram criadas por mim, em meio a essa solidão toda: a confecção de pães e a pintura dos azulejos, como recepção aos novos estudantes.

Estudantes da SP Escola de Teatro fazendo pão

A feitura destes pães, me lembro como se fosse hoje, veio a partir de uma provocação da Maria Thais, nossa primeira consultora pedagógica, a quem, aliás, tenho o maior respeito. Estávamos em minha sala no prédio do Brás da instituição, quando falávamos sobre Milton Santos e Thais refletia na ideia da artesania no teatro e todas as suas implicações, especialmente técnicas. E Thais, em algum momento da conversa, nos revela que andava a aprender a fazer pães e que estava encantada com o “milagre” da feitura destes pães. Uma atividade, como revelou nessa conversa, que requeria, ao mesmo tempo, arte e muita sabedoria.

Foi dessa conversa que me fez pensar em trazer para o primeiro dia de aula uma atividade que pudesse transitar exatamente entre técnica e linguagem, em um percurso que pudesse borrar as fronteiras entre corpo e espírito, na melhor acepção destas palavras.

A ideia do azulejo veio do Gilberto Dimenstein e de seu trabalho no Projeto Aprendiz, na Vila Madalena. Trabalhando próximo ao Cemitério São Paulo e tendo que conviver com os pichadores que elegeram os muros da necrópole, decidiu pintá-los e colocar neles azulejos criados pelos alunos de seu projeto. E, durante anos, essa ação cresceu pelos muros da Vila Madalena. Foi o Gilberto quem trouxe a inspiração do pertencimento, tão discutida pelo geógrafo Milton Santos, para a nossa SP Escola de Teatro. Então decretei: a partir já da primeira turma que chegasse à nossa SP Escola de Teatro, nossos estudantes teriam suas digitais artísticas coladas às nossas biografias, através de suas pinturas que, depois, seriam fixadas nas paredes de nossa instituição.

Mas, enquanto eu via essa profusão de ideias serem brotadas, diariamente a partir da minha sala, meu mundo interior estava desabando. Não tinha sido fácil perder a minha mãe, o Alberto e um monte de amigos queridos que se foram exatamente porque a SP Escola de Teatro tinha surgido.

E foram tão covardes, meu Deus, como foram covardes! Inventaram tantas histórias acerca da criação desse projeto. Tantas! Por alguns anos – e, de certa forma, até hoje – nós, Satyros, fomos crucificados em praça (Roosevelt) pública. Inventaram todas as histórias possíveis que pudessem nos enxovalhar. Desde que político X tinha caso com atriz Y, até que Os Satyros estavam se beneficiando com dinheiro destinado ao projeto da SP Escola de Teatro.

E também havia a questão pedagógica. A SP Escola de Teatro – e hoje tenho tanto orgulho disso – já nasceu decolonial. E, naquele momento, era muito difícil explicar porque nosso projeto político pedagógico não teria aulas de História do Teatro I, II e III, por exemplo.

Fernanda Montenegro dando aula na SP Escola de Teatro

Em nossa maneira de ver a pedagogia, além de intenções de colaborações com o mundo, nosso projeto, alinhado ao conceito de Escola Livre, surgia para promover, sim, uma revolução pedagógica no ensino das artes cênicas. Desde o início fomos muito pretensiosos e nem um pouco ingênuos.

Utilizando-se de um sistema de ensino modular e sistêmico, tendo a prática como base de trabalho, rompemos, desde o primeiro momento, com a noção de “acumulação” e “hierarquização”, ainda – e infelizmente – em voga na pedagogia tradicional.

Em nossa SP Escola de Teatro, os estudantes podem iniciar a partir de qualquer módulo (o que garante o preenchimento pleno das vagas), à medida que este é uma célula independente, com conteúdos próprios.

Logo, não temos, por exemplo, “Estética I, II, III” – tendo uma noção de sequencialidade como base da aprendizagem. Ao contrário, os estudantes traçam seus próprios trajetos, em módulos que se distinguem por cores (em referência às linhas do metrô de SP), estabelecendo-se como premissa o fato de que terão de percorrer todas as etapas, independentemente da ordem. Dentro desses trajetos, uma provocação às ideias de criação e fortalecimento de territórios e de espaçamento de fronteiras, para limar conceitos de “centros” e “periferias”. Sim, já pensávamos sobre isso em 2009.

Operando com um sistema pedagógico dos mais sofisticados e complexos da história da pedagogia teatral, constantemente pensado e trabalhado pelos maiores profissionais das artes cênicas do Brasil, nossos diálogos sempre se estenderam aos projetos de escolas de várias partes mundo. Ensino não hierárquico, não acumulativo e modular.

Na elaboração deste nosso projeto pedagógico, definimos que não seria uma escola arqueológica, que não nos interessava buscar a história pela história. Nossa escola seria, desde o início – e com toda a dificuldade que esses temas requerem –, viva e profundamente sintonizada com o nosso tempo.

Ivam Cabral e Cléo De Páris, em “Cabaret Stravaganza”

Desde 2010, a tradição só seria acionada a partir de alguma questão contemporânea que estivesse em evidência em nosso processo de investigação. Ainda como provocação a nós mesmos, seríamos uma escola que não se furtaria ao diálogo com as questões do tempo real. Só assim a história, importantíssima, poderia ser sempre (re)avaliada. E modificada a todo instante.

Mas eu comecei este texto para falar dos dois anos que fiquei distante dos palcos como ator. E tanta coisa ainda para pensar e refletir acerca deste tema.

Mas é só abrir o armário da angústia para percebermos que a vida pode, a todo momento, ser modificada e reestruturada. E isso talvez seja o melhor aprendizado. Porque, passados estes dois anos, 2009 a 2011, o meu retorno foi potencial.

Estive em cena em mais de uma dezena de espetáculos, a maioria deles perfazendo mais de 100 apresentações, recebendo sempre o carinho do público e até da cidade. Vimos, inclusive, o projeto da SP Escola de Teatro ser consolidado e sendo reconhecido internacionalmente.

O que me faz pensar agora que viver é, sim, uma grande aventura, que viver é um processo múltiplo e que, no final, se coerentes, as coisas terão feito sentido.

E viver terá valido a pena!!

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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