QUANTO VALE A VIDA DA GENTE?

Eu fiquei com vergonha de perguntar o seu nome. Afinal, às seis horas da tarde de uma sexta-feira chuvosa, perdido em Parelheiros, sozinhos em uma loja de conveniência de um posto BR, eu não queria que ela, bem bonita, pensasse que eu estava ali para um xaveco. De verdade, estava interessado em saber mais sobre a sua vida.

Foi assim. Com o tempo chuvoso e sem água no reservatório do parabrisa, parei no tal posto. Também tava morrendo de fome e fui até à loja de conveniência pra ver se encontrava alguma coisa pra comer. E ela estava lá.

Bem bonita, entre 25 e 30 anos, vestia um uniforme azul que escondia um pouco os seus traços elegantes. Eu pedi um café e um pão de queijo.

– O pão de queijo não está muito bom. É de manhã.

Eu gosto de coisas requentadas e prefiro sempre um pão murcho ao crocante. Tenho umas manias alimentares estranhas; vivo requentando o café no microondas, por exemplo.

– Não tem problema, eu até prefiro.

– É que está bem duro mesmo. Eu tentei comer um agorinha mesmo e não consegui, responde a moça num sorriso.

Eu ainda insisto que quero comer daquele jeito mesmo e a moça, então, me avisa que não irá me cobrar o pão de queijo. Por achar seu gesto mais do que honesto, quero saber mais sobre ela. Assim, começamos a conversar.

Pergunto se ela trabalha ali há muito tempo e se mora perto. Ela me conta que está no emprego há menos de um ano e que para chegar ao trabalho percorre um trajeto de mais ou menos duas horas.

– Duas horas pra vir e outras duas pra voltar?

– É, quatro horas por dia dentro de um ônibus.

Não estou exatamente surpreso porque conheço outras pessoas que fazem isso diariamente. Mas estou enternecido. Apesar de jovem e bonita, há uma tristeza enorme em seus olhos. Eu quero descobrir o porquê.

– Vive com seus pais?

Silêncio. Ela abaixa a cabeça, seus olhos se enchem de água. Começa a chorar. Estamos só nós ali e eu não sei direito o que fazer. Não fosse o balcão entre nós e eu a teria abraçado.

Para tentar acalmá-la, acabo falando umas bobagens do tipo “não fique assim”, “tenha calma”. É quando ela começa a falar. Primeiro devagar, pausadamente; depois, de maneira quase histérica; e, por fim, com uma serenidade assustadora.

Me conta que há exato um ano, perdeu o marido de maneira bárbara, depois de um casamento de seis anos e que agora vive com os pais e os três filhos.

Estou estarrecido e vou ouvindo o desabafo da moça que ainda me confidencia que o marido morrera de traumatismo craniano, num sábado alegre, após cair de uma escada, quando instalava a tevê de plasma, acabadinha de comprar.

Eu ainda tento consolá-la mas, de verdade, estou sangrando por dentro. Não consigo comer o pão de queijo e, honestamente, não me lembro de o ter sequer mordido.

Mais um pouco de silêncio. Ela me pede desculpas, limpa as lágrimas, sorri um sorriso tímido.

– Mas você é muito jovem pra ter uma história dessas. Seu marido tinha trabalho formal, era registrado, te deixou alguma segurança?

– Trabalhava, sim, me deixou uma pensão. E até um seguro de vida. Mas este seguro, até hoje, não tive coragem de ir atrás, não.

Me conta que o valor da apólice do seguro de vida do marido é de 21 mil reais e que tem um advogado que vive correndo atrás dela implorando para que recebam o dinheiro.

– Chamam de prêmio, sabia disso?

Eu estou entendendo sua fragilidade. No entanto, não tenho exatamente, ali, nenhuma palavra que possa tranquilizá-la ou, no mínimo, externar o que estou sentindo. Por dentro, choro.

– E como você acha que eu viveria com esse dinheiro? Compraria o que com ele? Um carro, que eu saberia, todo dia, que custou a vida do meu marido? Quanto vale a vida da gente?

Eu não tenho resposta. Ficamos mais um tempo em silêncio e somos interrompidos por um casal que entra na loja com dois filhos, também famintos. Eu pago a minha conta e, embora com vontade de abraçar a moça, me despeço com um sorriso.

No meu carro, Leonard Cohen canta:

Now so long, Marianne, it’s time that we began
to laugh and cry and cry and laugh about it all again

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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