Há algo de encantatório na palavra “primavera”. Ela carrega a promessa do recomeço, mas também a vertigem do novo. É o tempo em que o ar parece mais leve, as janelas se abrem, os corpos se movem com mais coragem. Há uma sensação de liberdade que invade as manhãs, mesmo quando o mundo ainda traz seus abismos. A primavera é o instante em que o impossível ensaia florir.
E é nesse tempo que Os Satyros se preparam para mais uma travessia. Semana que vem, embarcamos para Cuba, essa ilha que me acolhe como quem reencontra um velho amigo. Já estivemos lá outras vezes – muitas vezes –, e sempre foi intenso. Cuba tem cheiro de resistência, gosto de afeto e um tipo de sol que parece atravessar a pele até o espírito.
Desta vez, no entanto, há uma apreensão no ar. O furacão Melissa acabou de devastar a Jamaica e passou pela faixa leste da ilha. Havana foi poupada, mas ninguém sai ileso da passagem de um furacão. Nem as casas, nem as almas. Mais de setecentas mil pessoas precisaram ser evacuadas. É muita vida em suspensão. E ainda assim, se tudo correr bem, estaremos no majestoso Teatro Nacional de Cuba, apresentando A Casa de Bernarda Alba. Trinta pessoas, uma trupe que viaja movida pela força da bilheteria e da paixão. O teatro é o mais importante do país. Um luxo. Um milagre construído na teimosia dos que acreditam na arte como salvação.
Mas novembro não se encerra em Havana. No mesmo mês em que levamos Lorca aos ventos do Caribe, atravessamos o Atlântico rumo ao norte: Estocolmo. Lá, estreará A Neve do Brasil – Anna, Você Pode Ficar, texto meu e de Rodolfo García Vázquez, escrito especialmente para Ulrika Malmgren e Katta Pålsson, do grupo Darling Desperados. No elenco, além das atrizes, duas lendas suecas: Staffan Göthe e Bengt Braskered.
A peça fala de irmandade, memórias e sonhos que se recusam a morrer. E talvez seja disso que o Brasil e a Suécia mais precisem agora. Lembrar como é estar vivo. Anna e Jonna vivem presas a um passado de glória circense, tentando reinventar a vida numa casa que desaba por dentro e por fora. E entre o pó da neve e a lembrança do calor, buscam o impossível retorno ao lugar onde tudo começou. Como nós, artistas, que seguimos voltando ao palco, mesmo quando o mundo parece ruir.
E, enquanto uma parte de nós respira o Caribe e outra congela na Escandinávia, a Praça Roosevelt floresce. De 19 a 23 de novembro, acontece ali o nosso festival Satyrianas – este ano com o tema “Nós Vamos Sorrir”. Um nome que é quase um feitiço contra o desalento. Serão dias de teatro, dança, música, cinema, performance, literatura, oficinas, histórias. Um pulsar de arte em plena primavera paulistana. A praça, que tantas vezes foi abrigo, campo de batalha e casa, volta a se encher de vida. E, como sempre, de sorrisos.
É primavera! E, mesmo diante de furacões, de memórias tristes e de casas que desabam, nós seguimos sorrindo. Porque o teatro é isso. Um modo de lembrar o mundo que ele ainda pode florescer.
