PSICANÁLISE | Escrevi o prefácio do livro “Carniça”, de Paula Febbe

Para Freud, a memória é enganadora, e o sonho, a realização de desejo. Afinal, as memórias são seletivas e, se as emoções são atemporais, não é verdade que o passado explica o presente. Talvez, por isso, poucos toleram a análise porque poucos suportam a brutalidade da realidade. Existimos das relações que são, na verdade, campos minados, cheias de explosivos e desejos. Nossas memórias, portanto, não são inocentes.

Uma memória sempre habitará o lugar da outra e uma lembrança aparecerá em sua lacuna, continuadamente. Por serem uma construção permeada pelos nossos desejos, as lembranças sempre cumprirão um papel fundamental em nossas vidas. Não exatamente pela forma como se apresentam; mas, especialmente, como elas serão contadas e interpretadas por nós. Segundo a psicanálise, a fantasia tem estatuto de verdade e poucos conseguirão distinguir o que é ou não psíquico nela.

Comecei este prefácio falando de psicanálise por duas razões concretas. A primeira, porque Paula Febbe, a autora desta obra, é psicanalista; a segunda, porque é um livro que se sustenta na realização de desejo.

Carniça fala de uma aldeia chamada Bakhra, o lugar da imortalidade, onde ninguém conhece a morte. Nosso narrador tem 32 anos e está morto, transitando entre as dimensões de seu tempo real e as do tempo dos moradores desse lugar, existindo a partir de um buraco de incompreensões, permeado por uma absoluta lucidez, onde vida e morte não se conhecem.

Em algum momento, Paula nos avisa: “dentro dessa realidade pavorosa, ainda sim, existe o ego e tudo que se encaixa dentro dele, que é o mundo”. E, embora a autora nos apresente os mundos, todos eles – real e fantástico, todos diversos e cheios de ambiguidades –, entendemos que as coisas simples demais não foram criadas para nos apresentar medo, um dos grandes motores da vida e deste texto. Nem desejo, tampouco. Então, é exatamente desse mergulho no inconsciente que brota a extraordinária narrativa deste Carniça.

As fantasias podem ser mais importantes que o pensamento e o inconsciente será, sempre, infinito. O que aconteceu lá, em algum momento da vida, não é o que estará sendo relatado aqui. A raiva de lá não é essa, desse lugar e desse tempo em que escrevo. Portanto, se nos encontramos neste espaço de mundos absolutamente desmedidos, onde a luta não é exatamente pela sobrevivência – pelo menos como a conhecemos –, é diretriz que procuremos pelas razões que trouxeram as personagens até ali. E a psicanálise será um – apenas um – caminho para a construção de uma ideia. Só um, porque Paula nos apresenta não apenas um mundo, mas um universo inteirinho.

Em algum momento do livro, o narrador vai encontrar nesse lugar, entre vidas, onde passará a habitar, um bando de urubus que, de repente, começará a sobrevoar o local. Urubus que sobrevoam a vida, em um espaço onde a morte não existe – pelo menos da maneira que a conhecemos. Ali, “a vida eterna deles só existia enquanto quem eles eram ainda estava neles”.

Mais uma vez, o inconsciente é um motor de sobrevivência. E o desejo pueril também. Porque, até que atinja o outro, esse desejo nunca deverá ser criticável, não poderá ser julgado, jamais. Somos oniscientes e tudo, absolutamente, não passará de fantasias. Afinal, nossos recursos são invisíveis, nossa potencialidade só será testada na experiência e as pessoas serão apenas pessoas, sem deveres nem obrigações.

Paula, por sua formação, conhece muito bem o trânsito entre o mundo real e o das transferências. Não duvidamos, o inconsciente é real e a pulsão existe, embora suas operações sempre se deem no campo do subjetivo, que é o território da poesia, onde a autora transita com maestria. Não podemos esquecer, já fomos ensinados por Shakespeare, em A Tempestade, sua última peça: “somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos”.

O sustentáculo deste texto vem do inconsciente, esse local que não é construído, que é constituído, que é recebido pelo sujeito e formado e formatado o tempo todo. E não poderia vir de outro lugar. Porque somente o inconsciente tem capacidade de reter o desprazer. O inconsciente não possui a linguagem da palavra, é um ambiente, uma forma; se manifesta nas formações oníricas. Desse modo, Carniça é importante também pelo que não se fala. Seu clima e sua ambiência são os grandes protagonistas da obra. Afinal, a palavra ainda será sempre pobre demais para descrever as sensações.

Neste Carniça, a vida do nosso narrador não anda. A forma como ele morre mostra um pouco disso porque terá um importante sinal no enredo: a total incapacidade de condução de sua própria vida. Sua “doença”, a compulsividade pelo sexo, tem uma função vital em sua existência. Seus sintomas têm modos objetivos: de um lado, um deslocamento que o incapacita, causando-lhe um desprazer; de outro, tudo o que compensa este desprazer.

Paula, como analista que é, não se preocupa apenas com o conteúdo narrativo. Para ela, provavelmente, importa o que não foi dito exatamente, o que está por trás do que escreve. Dessa maneira, a autora propõe uma viagem a partir dos destroços do que está para além de seu texto.

Interessante também é que Carniça fala sobre o coletivo, de um mundo que é real. O que importa não é o que aconteceu, mas como esses mundos são apresentados. Assim, o lado animal vai sendo desvendado enquanto o “mal do mundo” habitará o outro. Os estranhos, aqui, serão sempre os outros.

Tudo é linguagem e o imaginário, que é também o lugar dos sonhos, pode ser visto no mundo que conseguimos ver. A gente vê o mundo que nós somos porque vivemos em prisões, e nossa realidade será sempre uma extensão do que nós conseguimos enxergar do mundo. Somos limitados. Não respondemos diretamente para as nossas consciências, mas a partir das manifestações de nossos desejos e afetos. Não necessariamente o que é real para mim é real para você. E é o que Paula faz neste Carniça, um texto que nos faz escutar com a mente aberta na escuridão. E a vida? Imponderável sempre. E já nos avisaram, não estará sob nossos controles, nunca!

Ivam Cabral
Ator, dramaturgo e psicanalista em formação

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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