Protasio Anjo do Espírito Santo, o filho da dona Liversa, e Lucinha Ziroldo que cantava vestida de Chapeuzinho Vermelho

Dizem que quando nasceu, Protasio Anjo do Espírito Santo não chorou. Ao invés disso, cantarolou. A irmã Milena, que trabalhou a vida inteira na Santa Casa de Misericórdia e que assistiu ao parto da dona Liversa, a mãe do bebê, foi testemunha:

— Uma belezinha, depois de um silêncio, cantou a “Ave Maria”, de Gounod.

Tinha quem duvidasse, mas minha mãe que conheceu bem a família da dona Liversa garantia:

— Não falava, quando era pequeno. Você perguntava o nome dele e ele respondia cantado. Perguntava a idade dele e ele cantava os números, ao invés de falar.

O fato é que Protasio Anjo do Espírito Santo, que era uns anos mais velho do que eu, sempre sonhou em ser cantor. Uma vez organizaram um concurso de calouros no coreto da praça de cima da cidade. Eu fui com a minha mãe e os meus irmãos. Lembro desse dia como se fosse hoje. Devia ter uns cinco, seis anos, no máximo. Nossa, nunca vi tanta gente na minha vida, era um mar de gente!

Então a bandinha da cidade acompanhava os artistas. Lembro bem da apresentação da Lucinha Ziroldo. Que coisa mais linda, meu Deus do céu! A Lucinha Ziroldo apareceu vestida toda de vermelho, com um capuz e, antes de cantar, fez uma coreografia onde arrastava primeiro o pé esquerdo pra sua esquerda e, depois, o direito pra sua direita. Quando concluía os dois movimentos, rebolava, realizava uma abaixadinha e, com sua voz de veludo, dava um uivo, tipo “auuuuuuu”, e então começava a cantar:

“Ei, menina do chapéu vermelho
Não ligue pra nenhum conselho
Dizem por aí que sou o lobo mau”

É, mas eu estava falando do Protasio Anjo do Espírito Santo que, naquela noite, se apresentaria pela primeira vez em público. Como era uma atração muito esperada, deixaram a apresentação do garoto para o final.

Mas o que aconteceu naquela noite foi triste. Porque quando iam anunciar a performance do Protasio Anjo do Espírito Santo, do nada, mas do nada mesmo, acabou a força da cidade. Ficou tudo um breu e as pessoas começaram a ir embora. Nós, inclusive. Até esperamos um pouquinho, mas não deu. Mas mesmo que tivéssemos esperado mais, não teria adiantado nada. A luz só voltou no dia seguinte. Naquele tempo a Companhia Luz e Força Santa Cruz, que abastece ainda hoje o serviço de energia elétrica na cidade, era muito ineficiente. Como sofremos, meu Deus! Só quem viveu aqueles tempos pode se lembrar disso.

O Protasio Anjo do Espírito Santo ficou numa tristeza por meses. Então a dona Sussa e a dona Mazir, que eram do Lions Clube, sabendo da tristeza do garoto, inventaram lá uma festa beneficente só para curar a tristeza do rapazote. Combinaram: na primeira parte, a dona Mazir se apresentaria com o seu acordeón, primeiro tocando e depois cantando, também, duas guarânias e um bolero. Lucinha Ziroldo viria de Chapeuzinho Vermelho para cantar seu hit, “Lobo Mau”, e a noite se encerraria com o Protasio Anjo do Espírito Santo cantando três canções do Gianni Morandi.

Para esta noite, o Lions Clube organizou um jantar beneficente , com renda destinada ao Asilo São Vicente de Paulo. Esse foi o problema para a minha família. Porque só poderiam entrar quem comprasse as entradas para o jantar. E minha mãe não tinha dinheiro. Foi a dona Liversa que encontrou uma solução:

— A apresentação do Protasio Anjo do Espírito Santo só vai começar depois do jantar. Então, quando todo mundo entrar, vocês pulam o muro pela casa do padre Max e assistem pela janela, no quintal.

Minha mãe ficou muito preocupada.

— Ah, Liversa, não tenho coragem, não. Imagina só pular muro da casa dos outros!

E proibiu que a gente fizesse isso. Mas não adiantou. No dia do jantar beneficente do Lions Clube, nós enrolamos a nossa mãe, fomos pro terreno do padre Max e pulamos o muro pro Lions Clube. E, no escuro do quintal, fomos vendo aquelas pessoas elegantes se servindo num bufê preparado pela dona Glaucia. Nossa, só de lembrar dá água na boca. Mas como a gente já tinha jantado, nem ficou com tanta vontade assim. Só olhar já tava bom.

De repente, meu Deus, que coisa mais linda. A dona Mazir vai lá na frente, está vestida com um vestido azul brilhante, coberto de lantejoulas. Fala umas coisas no microfone, senta-se numa cadeira de veludo vermelho e começa a tocar seu acordeón.

Que lembrança! Dona Mazir canta, as pessoas aplaudem e aí anunciam a Lucinha Ziroldo. Nunca vi coisa mais linda na minha vida inteirinha. A Lucinha Ziroldo está vestida de Chapeuzinho Vermelho e repete aquela coreografia, arrastando primeiro o pé esquerdo pra sua esquerda e, depois, o direito pra sua direita, rebolando e dando uma abaixadinha. O povo aplaude, enquanto a Lucinha Ziroldo dá um uivo, “auuuuuuu”, e começa a cantar:

“Ei, menina do chapéu vermelho
Não ligue pra nenhum conselho
Dizem por aí que sou o lobo mau”

Ao final de sua apresentação, Lucinha Ziroldo é aclamada pela plateia. Dona Mazir volta ao palco e agradece a Lucinha Ziroldo, que sai de cena ovacionada.

Então chega o momento tão esperado da noite. Quando a dona Mazir anuncia a apresentação do jovenzinho Protasio Anjo do Espírito Santo a energia da cidade é interrompida, mais uma vez. Alvoroço geral.

Foi assim que Ribeirão Claro nunca assistiu a uma apresentação de Protasio Anjo do Espírito Santo. Depois desta noite, o rapaz disse que nunca mais cantaria em público e se limitou a cantar no banheiro de sua casa ou no meio do cafezal. É, nem adiantava mais fazer festa beneficente para o garoto porque começaram a falar na cidade que o canto do rapaz não trazia coisa boa, não. Daí, de vez em quando, saía de casa e se metia em algum cafezal e cantava. Da minha casa, muitas vezes, mas muitas vezes mesmo, a gente ouviu o canto do Protasio Anjo do Espírito Santo vindo do cafezal do Chico Tripa. Confesso – mas não é pra contar pra ninguém, hein? – que na minha casa nunca ninguém gostou muito do que ouvia.

O tempo passou e Protasio Anjo do Espírito Santo começou a namorar uma moça que morava no Patrimônio da Água da Mula, a Liz Eandra Emanuely. Se casaram e ele foi morar no sítio da família da jovem. Mais um tempinho depois e a gente fica sabendo que o Protasio Anjo do Espírito Santo havia voltado para a casa da dona Liversa, sua mãe.

A dona Liversa contou pra minha mãe que a Liz Eandra Emanuely, com dor no coração mesmo porque gostava do marido, não aguentou o canto do rapaz; que, depois do casamento, qualquer coisa que ia falar, falava cantando. Até levaram o moço ao doutor Heitor, o médico da cidade, que acertou o diagnóstico:

— Protasio Anjo do Espírito Santo não podia ficar feliz porque, feliz, cantaria pra sempre.

Liz Eandra Emanuely não quis saber daquela felicidade toda, não. Dizem que a despedida entre Protasio Anjo do Espírito Santo e sua amada foi bem triste porque a moça sentia amor pelo rapaz. Mas gostava dele desolado, descontente. E deduziu, teve certeza mesmo, não aguentaria aquela cantoria nem mais um segundo.

Protasio Anjo do Espírito Santo foi embora de Ribeirão Claro mais ou menos na mesma altura que eu fui para Curitiba. Um tempo depois foi buscar sua mãe e nunca mais soubemos da família Laranjal. Sim, tinha Laranjal no meio porque o nome completo do Protasio Anjo do Espírito Santo era Protasio Anjo do Espírito Santo Três Vezes Ave Maria do Laranjal.

E a Lucinha Ziroldo, que cantava vestida de Chapeuzinho Vermelho, arrastando primeiro o pé esquerdo pra sua esquerda e, depois, o direito pra sua direita, rebolando e dando uma abaixadinha, enquanto uivava “auuuuuuu”? Essa história é longa e prometo contar tudo em um outro dia.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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