A Avenida Paulista é um tapete de concreto — estendido do Paraíso até a Consolação — por onde desfilam sonhos, buzinas e, de vez em quando, o déjà-vu torrando no asfalto. Pois foi ali, nesse corredor de miragens, que descobrimos que até as ideias passam no semáforo vermelho quando ninguém fiscaliza.
Comecemos pelo óbvio: não há nada de “inédito” em cruzar a Paulista de ponta a ponta. Qualquer mortal com dois pés e uma tarde livre pode fazê-lo sem precisar de patrocínio. O inédito — e aqui está o brilhantismo — é transformar esse passeio em espetáculo, dar-lhe dramaturgia, trilha, luz que pisca com a pressa dos bancos e, claro, um título que prometa do Êxtase ao Apocalipse em menos de três quilômetros.
E aí surge o Sesi Cultura, guardião da seriedade institucional, assinando embaixo de duas propostas gêmeas como quem entrega RSVP para dois casamentos marcados no mesmo salão. Não é falta de financiamento. É déficit de atenção. Bastaria ter fremido a sobrancelha, convocado os proponentes para uma conversa civilizada e perguntado: “Amores, essas sinopses não se parecem demais para dividirem o mesmo guarda-chuva?”. Uma troca de e-mails, meia dúzia de parágrafos — e pronto, salva-se a originalidade, evitam-se brigas na fila da pipoca.
Mas o que tivemos foi silêncio administrativo, esse fantasma que ronda editais públicos desde que o carimbo se apaixonou pela papelada. O diretor da peça rival? Vítima também. Provavelmente, um inocente útil, apaixonado por sua aventura cênica, talvez nem imagine que alguém já atravessara a rua antes dele. O problema mora no 12.º andar da burocracia, onde as gavetas engolem projetos sem mastigar, cuspindo-os mais tarde com sobrenome alheio.
Freud diria que o trauma é a repetição da cena não simbolizada. Lacan completaria que o “desejo do Outro” é dose — sobretudo quando o Outro atende por um CNPJ – do Sesi, no caso. Nós, proponentes, ficamos no meio do palco, nus em nossa fragilidade, acreditando que instituições sérias cuidam de suas crias com respeito. Ingenuidade? Talvez. Mas quem faz arte vive de alguma fé: a fé de que, quando a cortina abrir, ninguém terá trocado nosso figurino por uma réplica de fast-fashion.
Uma simples mudança de nome resolveria? Resolvia, sim — como trocar a plaquinha de um restaurante e não mexer no cardápio. Seria pouco, mas ao menos evitaria o constrangimento de sentar-se na plateia e assistir à própria ideia declamando versos que você não escreveu.
No fim, resta-nos atravessar de novo a Paulista, cabeça erguida, porque o concreto não guarda rancor: ele apenas devolve o eco. E talvez, nesse vai-e-vem de passos, descubramos outra história escondida numa esquina, pronta para virar peça — contanto que o edital, dessa vez, tenha olhos, ouvidos e, quem sabe, um GPS criativo para evitar colisões de trajetos.
Enquanto isso, seguimos rindo da ironia: a avenida continua lá, impassível, assistindo de camarote a mais esse drama humano. Afinal, como já ensinava o filósofo da padaria da esquina, “ideia boa é que nem café fresco — se você vacila, o vizinho pega antes”.
Foto: Andre Stefano