Foi assim. Em 2004, estávamos em cartaz com “A Filosofia na Alcova”, no Satyros Um, à meia-noite. Eu, que havia atuado na peça como ator durante anos, não estava mais no elenco e, naquela noite, trabalhava na bilheteria do espetáculo.
Como a peça tinha suas lotações sempre esgotadas, aceitávamos as reservas – realizadas através de telefone ou Internet – até 30 minutos antes do início da sessão. Assim, por exemplo, uma pessoa que tivesse feito sua reserva por telefone e chegasse ao teatro depois das 23h30, não teria seu bilhete assegurado.
Então, numa noite, perto das 23h45 e com a bilheteria de “A Filosofia na Alcova” já encerrada, aparecem duas pessoas, na verdade dois rapazes, querendo ver a peça. Me informam que tinham feito suas reservas por telefone. Eu explico que não há mais bilhetes e que as tais reservas só eram respeitadas até às 23h30 e que, infelizmente, eles não poderiam assistir à apresentação daquela noite.
Os rapazes estão decepcionados. Me explicam que vêm da periferia, de muito longe, que se prepararam a semana toda para estarem ali. Ensaiamos uma rusga que é corrigida depois que eu os convido para assistir ao espetáculo no dia seguinte.
Eles estão desconfiados. Imaginam, num primeiro momento, que estou fazendo aquilo apenas para despistá-los. Eu insisto, explico aos dois que são meus convidados para o dia seguinte. É quando eles me contam que moram no Pantanal. Fico confuso, penso no Pantanal Matogrossense, eles riem. Me ensinam que o Jardim Pantanal é um bairro da zona Leste. Conversamos mais um pouco e eles se vão.
No dia seguinte, perto da 11 da noite, mais uma vez estou na bilheteria do Satyros e Breguesso aparece com seu amigo. Me trazem um presente, um sofisticado incensário de argila que eles propagam ter sido confeccionado por eles próprios. Os dois assistem ao espetáculo e, ao final, numa das mesinhas da calçada da Roosevelt, já com todo o pessoal do Satyros, conversam conosco até altas horas.
Ficamos sabendo, naquela noite, muitas coisas sobre o Jardim Pantanal. Breguesso é cabeleireiro e trabalha em um salão, ponto de encontro dos jovens do bairro. O rapaz é uma espécie de líder comunitário e está muito interessado no teatro dos Satyros, na Praça Roosevelt, no Marquês de Sade.
O que acontece a seguir é, no mínimo, curioso. Breguesso começa a frequentar o Espaço dos Satyros, trazendo sempre novos amigos. Eles nunca pagaram ingresso ali. Depois de algum tempo, era comum, inclusive, ajudá-los com o transporte. O Breguesso ligava:
— Hoje, vamos em cinco mas só quatro têm dinheiro para o ônibus. Vocês podem ajudar com o que falta?
Foi exatamente assim que começou a nossa história de amor – e respeito, muito e mútuo – com o povo do Jardim Pantanal. Breguesso contabilizou, certa vez: mais de mil pessoas do bairro teriam vindo ao Satyros para assistir aos trabalhos do grupo.
Um dia, num sábado, eu e o Rodolfo, curiosos com o que vinha acontecendo, decidimos ir até à comunidade do Breguesso. Queríamos ver, in loco, o que acontecia lá.
Foi uma das grandes emoções da minha vida. O salão do Breguesso era todo decorado com dezenas de cartazes de nossos espetáculos. Mais: fomos tratados como príncipes. Várias pessoas nos reconheciam dos trabalhos que haviam assistido em nosso pequeno teatro da Praça Roosevelt.
É o Rodolfo quem tem a ideia:
— Temos que fazer alguma coisa com esse pessoal. Começamos com uma oficina de teatro e vemos o que acontece.
Assim, durante anos, pelas manhãs de sábados, lá íamos nós para o Jardim Pantanal tentar entender o que o teatro estava fazendo em nossas vidas.
Eu e o Rodolfo, porém, tínhamos um acordo: nunca profissionalizaríamos este trabalho. Não criaríamos ONG, nem associação, nada. Para nós, teria que ser voluntário, na melhor acepção da palavra. O que, no entanto, era necessário insistir: que eles encontrassem uma maneira de profissionalização.
Imediatamente, percebemos que o caminho mais apropriado seria, ao invés de trabalharmos com exercícios de atuação e jogos dramáticos e montar um espetáculo ao final, o melhor seria investir em uma formação técnica. Foi assim que, durante anos, nossos técnicos de som e luz vieram todos do Jardim Pantanal.
Neste período, dezenas de técnicos foram sendo formados no Pantanal para os espaços do Satyros, na Roosevelt. Alguns deles, inclusive, viajaram conosco para o exterior. Me lembro que, em algum momento, muitas das crianças do Jardim Pantanal sonhavam um dia trabalhar no Satyros porque poderiam, quiçá, viajar para a Alemanha, para a França. Sim, alguns dos meninos do Pantanal, técnicos nossos, atuaram conosco em turnês fora do Brasil.
Em 2006, resolvemos criar um espaço de trabalho próprio no Jardim Pantanal. Chamamos de Espaço dos Satyros Três. Naquele momento, já tínhamos uma equipe considerável: além do Breguesso, dezenas de jovens que, aos poucos, foram se juntando a nós.
Uma época heróica aquela. Localizamos um imóvel, que tinha sido uma fábrica de bijuterias, e o alugamos por cerca de 500 reais ao mês. E, durante alguns anos, fizemos um trabalho admirável ali. Deus sabe o quanto lutamos para manter o aluguel e as despesas daquele espaço!
Nós, Satyros, ficamos à frente até que, num belo dia, o grupo ganhou um dos editais do VAI, o Programa de Valorização de Iniciativas Culturais, criado pelo Nabil Bonduki. Achamos, então, que o grupo teria, enfim, autonomia para desenvolver suas iniciativas. Isso foi em 2009. Infelizmente, o projeto acabou sendo sucumbido quando o grupo concluiu o programa de trabalho do prêmio.
Mas me lembro bem. Quando estávamos à procura de espaços no Pantanal, tivemos que negociar com o pessoal do PCC. E, embora nos vissem com bons olhos, eram sempre eles que davam o aval, a palavra final. Entenderam, desde o início, que educação e cultura eram essenciais na formação de sua comunidade.
Certa vez, em 2006, o jornalista Ubiratan Brasil, do Estadão, quando fazia uma matéria para o lançamento do livro “Cia. de Teatro Os Satyros: um Palco Visceral”, do Alberto Guzik, quis ir até à sede três do Satyros. Como viria em um carro do jornal, tivemos que negociar com o PCC, depois de várias reuniões, a permissão para que ele pudesse circular pela comunidade.
O encontro mais impressionante com o pessoal do PCC, no entanto, se deu logo no início de nossa história no Pantanal, mais ou menos no início de 2005. Ao chegarmos na comunidade, somos informados que querem falar conosco. Foi a primeira vez que conversamos com eles. Confesso que fomos ao encontro amedrontados. Impressionante, porém, foi o que ocorreu naquele dia.
A reunião aconteceu na casa de um casal, que nos serviu café e bolo de fubá. À porta, fomos recebidos pelo filho mais novo deles, que esteve presente em todos os momentos de nossa conversa e que seria, tempos depois, um de nossos primeiros alunos.
O dono da casa era líder de uma facção importante do PCC, embora tenhamos falado quase nada sobre isso. Mas ele nos impressionou ao revelar – sim, na frente do filho, mais ou menos de 10, 11 anos à época –, que nós, Satyros, seríamos bem-vindos ali porque ele não gostaria de designar ao filho caçula o futuro que lhe fora destinado.
— Quem sabe o teatro não possa mudar as coisas por aqui…
Vários desses meninos do Jardim Pantanal hoje cresceram e são essenciais em minha vida; na vida do teatro paulistano, também. Alguns deles continuam trabalhando com a gente, tanto no Satyros, quanto na SP Escola de Teatro.
Um deles, Rafael, é funcionário da Escola e continua vivendo no Pantanal. Ontem, paramos para conversar um pouco. Com essa confusão toda, eu queria saber como eles estavam convivendo com o toque de recolher, como suportavam, se eles estavam amedrontados. Ele me conta que perdera um de seus melhores amigos na semana passada, assassinado em um tiroteio, no ponto de ônibus.
Rafael é negro e bem bonito, tem 20 e pouquinhos anos, entrou na faculdade este ano e acabou de ganhar um prêmio do Ministério da Cultura para jovens empreendedores. Depois de um papo emocionado, ele me revela, referindo-se ao nosso encontro em 2005:
— Os caras que lideram tudo isso hoje são os meninos daquela época.
[ foto do núcleo “Vida Vruta”, do Satyros Teens ]