por Renato Farias
Fomos os primeiros a parar e seremos os últimos a voltar.
Certamente você já ouviu essa frase, dita por algum artista, após o início do isolamento social. Se seremos os últimos a voltar, ainda não sabemos, mas certamente fomos os primeiros profissionais a ter que aceitar que os encontros presenciais, nos teatros e casas de show, tinham que parar para evitar a propagação do coronavírus.
Aquele que sempre foi nosso maior trunfo, acabou se voltando contra nós: o encontro presencial. Maior trunfo porque era nossa resposta quando surgia a questão: por que o teatro sobrevive há tanto tempo, mesmo com o advento de novas tecnologias para se contar uma história? Porque no teatro, atores e plateia estão juntos, de corpo presente e em tempo real.
Pessoalmente, primeiro sofri o impacto de, em março, ter que sair de cartaz durante uma bela temporada, além de ter que suspender encontros criativos que resultariam em uma nova estreia em maio. Depois, houve o período em que fiquei esperando… esperando… sabe-se lá o quê. Parecia não haver saída. Teatro em tempos de pandemia soava como algo inviável.
Como a angústia era geral, grupos e atores começaram a disponibilizar gravações de espetáculos gravados antes da quarentena. Em seguida, o Sesc, nosso bravo parceiro, iniciou sua temporada de Teatro em Casa, que segue em atividade pelo YouTube. São solos em que os atores fazem adaptação de trabalhos já realizados. E, assim, fomos passando as primeiras semanas de isolamento.
Até que, em maio, alguns amigos, entre eles a produtora Aline Mohamad e o ator e compositor André Muato, me convidaram para um sarau virtual: o “Sarau do Amor Possível”. Éramos 25 pessoas numa sala do zoom. Cinco artistas apresentavam suas criações: textos, poesias, músicas, reflexões sobre o quanto é possível amar nesse período solitário e opressivo. Nós, outros vinte, éramos plateia. Foram tantos sentimentos que é difícil explicar. Primeiro, a sensação de ser novamente plateia. Desde adolescente assisto tudo o que posso, acompanho a trajetória dos meus amigos e associo viajar a conhecer o teatro que se faz naquele local para onde vou. Assim, voltar a ser espectador já foi emocionante. E quando o zoom caiu (a cortina se fechou), eu também caí em prantos pela impossibilidade de amar, solitário em casa.
Fiquei um bom tempo dividido entre a emoção que o sarau tinha me despertado e a tentativa de compreensão do fenômeno que tinha ocorrido. Por que aquilo não podia ser teatro? Eles estavam lá, junto comigo, naquele momento, se expondo, correndo riscos, se emocionando, nos emocionando, se afetando, nos afetando.
Logo depois, assisti uma live (outro fenômeno importante da quarentena) onde a diretora e crítica teatral Daniele Ávila Small dizia o quanto questionar se o teatro virtual é ou não é teatro, é uma falsa questão: não se pode aprisionar o teatro em nenhuma definição. Ele vai além do fenômeno que ocorre nas salas de teatro, ou nas ruas, ou em qualquer lugar que se proponha. Está ligado, também, à reflexão que suscita, ao que se escreve sobre ele, a suas imagens gravadas, a um mundo teórico e prático que o acompanha e o enriquece.
Em seguida, o também crítico Patrick Pessoa, fez um lindo texto ampliando esse pensamento, lembrando, inclusive, o quanto a tecnologia já dialoga com o teatro desde seus primórdios.
Assim, aquele sentimento de impotência, de quando tiramos precocemente nossos pertences do camarim, transformou-se em potência criativa. E reacendeu uma urgência que guia meus passos desde 1984: é preciso criar para que a beleza do mundo fique visível. É preciso criar para que a finitude não seja um fardo, mas uma companheira a quem se respeita e com quem é possível aprender cotidianamente.
Evoé! O teatro voltou a ser meu companheiro diário!
Passei a ir ao teatro, novamente, várias vezes por semana: assisti peças como “12 Pessoas com Raiva” e “Ensaio Sobre o Nada”, do Coletivo Pandêmica; “Tudo o que Coube numa VHS”, do Grupo Magiluth, de Recife; “O Filho do Presidente”, da dupla Ricardo Cabral e Natasha Corbelino.
Vi e ouvi leituras dramáticas, como as feitas regularmente pelas atrizes Patricia Selonk e Simone Mazzer no projeto Quarencena, ampliando, por meio da parceria do artista visual Thiago Sacramento, as possibilidades do Instagram; uma vibrante leitura de Hamlet Máquina feita pela atriz Letícia Spiller; e uma apaixonada leitura de “Namíbia Não”, feita pelo autor Aldri Anunciação e outros atores baianos, entre eles Fabrício Boliveira. E já me inscrevi para a “primeira fila” de “Onde Estão as Mãos Esta Noite”, com a atriz Karen Coelho.
Não esquecendo, a maior de todas as experiências nesse período: “A Arte de Encarar o Medo”, do Grupo Os Satyros de São Paulo. Uma pesquisa madura que traduz a ousadia e o talento desse coletivo que faz teatro, liderado por Ivam Cabral e Rodolfo García Vásquez, há mais de 30 anos.
Busque esses espetáculos nas redes sociais. Quase todos seguem em cartaz. Afinal, não importa onde você está. Você pode ter acesso a qualquer um deles. E isso é um grande ganho do teatro virtual em relação ao presencial.
E, retornando a minha história pessoal, a Companhia de Teatro Íntimo, grupo que dirijo há 15 anos, já deu o primeiro passo nesse caminho com a apresentação de “Stonewall 50”, direto da casa do ator Thiago Mendonça, dentro do Projeto Cultura em Casa, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Assista lá no Youtube.
Estamos, também, finalizando os ensaios para uma versão virtual do “Negra Palavra”, que é resultado de uma parceria com o Coletivo Preto. Aquele mesmo espetáculo que foi tirado de cartaz em março, no início disso tudo. E, em breve, uma programação diversificada pretende marcar nossos 15 anos de pesquisa artística, na Cia.
Importante reforçar que, junto com essa retomada da urgência da criação, é necessário compreender o estado de emergência em que vivemos: milhões de brasileiros estão em uma situação muito difícil. Precisam de ajuda para comer e para se proteger contra a epidemia. Entre eles, um número imenso de artistas.
O apoio dos governos, quando há, é tímido ou permeado pela perversidade. Ora por querer diminuir o valor oferecido, ora por dificultar o acesso ao direito. Um importante projeto de lei, batizado de Aldir Blanc, já foi aprovado pelo congresso, mas ainda aguarda sanção do presidente.
Nesse cenário, o maior apoio, sem dúvida, segue vindo da própria classe artística e das cidadãs e cidadãos que entendem o quanto a arte e os artistas são fundamentais para a democracia, para que existam reflexões na sociedade e para a manutenção da saúde mental de todxs.
Portanto, é preciso encontrar um equilíbrio entre a urgência da criação em tempos de epidemia e a emergência que esses tempos árduos nos impõem.
Fonte: Gaby Haviaras