OPINIÃO | “Veneno”: teatro em carne viva

Há espetáculos que narram. Outros, feito membranas, escutam o ar antes de responder. Veneno pertence a essa segunda estirpe. Na peça da holandesa Lot Vekemans, que Eric Lenate instala no Teatro Estúdio, um homem e uma mulher se reencontram diante de algo mais corrosivo do que a morte: aquilo que ainda respira quando o luto falha.

Dez anos depois de enterrarem o filho, eles recebem um aviso burocrático – o solo do cemitério foi contaminado e será preciso remover o corpo. A notícia aciona outra toxicidade: as narrativas que cada um secretou para se manter em pé. O texto monta um jogo de réguas fantasmas: quem mede a dor de quem, quem deve perdão a quem, quem ainda consegue chamar o outro pelo nome?

Freud, em “Luto e Melancolia” (1917), descreve dois destinos possíveis para a perda. No luto, o Eu poupa a autoestima e o tempo opera como anestesista. Na melancolia, a catástrofe se implode para dentro: o objeto perdido coloniza o sujeito e rói a autoimagem. Veneno dramatiza o ponto de fratura entre esses regimes: ela – Cléo De Páris – arrisca deixar o luto gangrenar; ele – Alexandre Galindo – disfarça a vertigem com um humor de porcelana. Cada frase é tentativa de desapegar o morto sem expulsar o amor, cirurgia que o texto executa a bisturi nu.

Cléo e Galindo, aqui, oferecem uma clínica de escuta. Ela sustém gestos no milímetro anterior ao colapso, alongando o tempo como se o ar se recusasse a vazar. Ele coloniza o intervalo entre a palavra e o eco; suas pausas não são hiatos, mas pontes invisíveis onde o espectador atravessa para o avesso da cena. Quando se encontram, o respirar de um repercute a frase incompleta do outro e, nesse contracanto, surge o real lacaniano – matéria que não cessa de não se inscrever, mas insiste no corpo.

Lenate entende que mexer na cenografia seria desperdiçar energia psíquica. Assim, sustenta um palco nu, banco metálico, luz que silhueta os ossos, silêncio que pulsa. O som é quase todo silêncio. Winnicott lembraria que o vazio, se sustentado, vira lugar de jogo. Cléo manipula a mãe como quem carrega um vaso já trincado: qualquer sílaba pode fazê-lo pó. Galindo abriga o pai numa piada frouxa, mas um átomo de realidade basta para implodir o escudo. Entre suas respirações ecoa o que a peça não diz: amar é auto-envenenar-se aos goles lentos – e continuar bebendo.

A tradução de Mariângela Guimarães troca o holandês afiado por um português que nos pertence de imediato. Some o sabor de “peça importada” e sobra o desconforto familiar: quem nunca conviveu com um veneno doméstico?

A estreia coincide com a chegada maciça da dramaturgia holandesa aos nossos palcos. Ao lado de Vekemans, aportam Esther Gerritsen, Eric de Vroedt, Alex van Warmerdam – todos cirurgiões da palavra, minimalistas que expõem feridas sem esparadrapo – e que integram o Projeto de Internacionalização de Dramaturgias idealizado por Márcia Dias e publicado pela Editora Cobogó. Eu próprio traduzi, ao lado de Rodolfo García Vázquez, Planeta Tudo, de Gerritsen, mas Veneno – que não figura no projeto –, talvez seja o corte mais cáustico dessa leva.

Como alegoria psicanalítica da perda ou como prova do vigor teatral dos Países Baixos, a montagem de Eric Lenate lembra que o amor é laboratório de radiações. Depois da explosão, resta sempre poeira para inalar – e cada inspiração traz de volta aquilo que, pensávamos, já havíamos enterrado.

Teatro Estúdio
São Paulo

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1869

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