Uma epifania literária sobre identidade, autoria e os labirintos da memória
Desde as primeiras páginas, A mais recôndita memória dos homens (Fósforo) nos fisga com uma força rara. Nunca pela pressa, mas pela importância de seu chamado. Há algo de hipnótico na forma como Mohamed Mbougar Sarr nos lança numa Paris de becos e bibliotecas, onde um jovem escritor senegalês, perdido e dilacerado entre o exílio e a criação, caminha à deriva em busca de um enigma literário: o autor de um livro maldito, desaparecido depois de ser acusado de plágio. Mas, antes de seguir, queria registrar aqui o magnífico trabalho da capista Flávia Castanheira. A capa é linda — arrisco dizer, até mais bonita que a da edição original, lançada pela Livre de Poche em 2021. Aliás, o livro venceu o Prêmio Goncourt, o mais importante da França naquele ano.
O romance se arma como uma matriosca. Um livro dentro do livro, vozes que se sobrepõem, épocas que colapsam umas sobre as outras. Nada ali é fixo. O passado fala no presente, a ficção imita o real, o real se deforma em delírio. O autor nos arrasta por uma travessia de linguagens. Ora crítica literária, noutras vezes prosa poética, ou diário, às vezes ensaio. E tudo isso articulados a um frescor de quem desafia os moldes da narrativa tradicional, mas sem perder o leitor, mesmo nos trechos mais digressivos. Ao contrário, é justamente ali que ele nos captura.
A discussão sobre o plágio, inspirada por casos reais como o de Yambo Ouologuem, autor africano esquecido após acusações similares, não é apenas tema, é espelho. O romance pergunta o tempo todo o que é, afinal, originalidade num mundo onde toda história já foi contada, e propõe um pacto ético e existencial com a literatura. Porque o verdadeiro crime não é repetir, mas calar.
Existe também algo profundamente comovente nesse protagonista desajustado, que perambula entre línguas e cidades como quem não pertence a lugar algum. Um estrangeiro da própria existência. Seu exílio não é apenas geográfico, é simbólico. Habita o intervalo entre tradição e invenção, entre o peso de uma memória ancestral e o desejo feroz de dizer algo novo.
Em certos momentos, a realidade cede ao fabuloso. A fantasia, não como gênero, mas como respiração do insólito, toma conta da narrativa com uma leveza quase imperceptível. E quando nos damos conta, já estamos imersos num mundo onde o mistério importa mais que a resolução, onde a literatura é um corpo vivo que escapa das estantes e se infiltra nas nossas vidas.
Penso que A mais recôndita memória dos homens não é apenas uma homenagem à literatura. É um campo de batalha entre o esquecimento e a permanência. Um romance que desafia, provoca e deslumbra. E que nos obriga, com delicadeza e urgência, a repensar o lugar da escrita no mundo. E o nosso lugar nela.
A mais recôndita memória dos homens
Fósforo