NA MÍDIA: O SUBMUNDO ROMANO EM VERSÃO PAULISTA

A montagem do texto de Petrônio "Satíricon" pelo grupo Os Satyros é dividida em três partes diferentes, incluindo uma "experiência sensorial" urbana e uma "rave teatral" sem hora para acabar

por Diego Viana

“Satíricon” de Petrônio, texto escrito no século I d.C., invadiu o Festival de Teatro de Curitiba deste ano com duas montagens, ambas na mostra XXX, dedicada à temática adulta. O diretor paranaense Edson Bueno apresentou “Satyricon Delírio” e o grupo paulistano Os Satyros compareceu com “Satyros’ Satyricon”, dirigida por Rodolfo García Vásquez.

Depois do festival, a versão de São Paulo estreia no teatro do próprio grupo, na praça Roosevelt, amanhã, com divisão em três partes – um tríptico, segundo o diretor. Só uma dessas partes, chamada “Satyricon”, é uma apresentação teatral “clássica”, com dramaturgia do cineasta e dramaturgo Evaldo Mocarzel.

A primeira parte, chamada “Trincha”, é uma “experiência sensorial, para que o público entre nos submundos de uma metrópole de seres bizarros, como [a do filme] ‘Blade Runner'”, relata o diretor. A última parte, “Suburra”, é “uma balada performática, sem modelo, inventada a partir da ideia de uma feste de escravos no século XXI”.

A inspiração foi tirada da obra de Michael Hardt e Antonio Negri, em que “o corpo submetido é a chave do Império”, segundo García Vásquez, que cita um escravo do texto dizendo que ele mesmo é a fortuna de seu proprietário. “As pessoas dançam e se divertem, mas ao mesmo tempo, elas refletem sobre sua condição no mundo contemporâneo.”

Por que o “Satíricon”, que foi transformado em filme pelo cineasta italiano Federico Fellini em 1969, tomou de assalto os palcos do principal festival de teatro do Brasil em 2012, quase mil anos depois de ter sido escrito?

Segundo García Vásquez, os atores do grupo tinham na mente a imagem do filme de Fellini, mas descobriram, com espanto, que o texto de Petrônio tem uma proximidade incrível com a atualidade. “Ele apresenta temas muito vivos na região central de São Paulo, particularmente os garotos de programa”, diz.

Os personagens de Petrônio são malandros do submundo romano no alvorecer do período imperial. “São gente muito parecida com os nossos malandros de rua de hoje”, estima o diretor. “Eles dão pequenos golpes, se prostituem quando necessário e enganam os clientes. Eventualmente, também se dedicam a um discreto tráfico de drogas.”

“Fizemos várias entrevistas com garotos de programa do centro de São Paulo”, conta García Vásquez. “Parece que Petrônio estava escrevendo sobre os dias de hoje.” A dramaturgia de Mocarzel, portanto, envolveu um grande trabalho de mixagem, em que, segundo García Vásquez, há cerca de 15% de conteúdo extraído dos depoimentos atuais.

Mocarzel se viu surpreso com a qualidade literária do texto do Satyricon, que, segundo García Vásquez, “tem elementos que antecipam as formas de literatura desenvolvidas por [William] Shakespeare e [Miguel de] Cervantes”. Junto com as “Metamorfoses” de Apuleio, o “Satíricon” é considerado um remanescente da literatura de prosa latina – ainda que partes da obra estejam redigidas em verso. O “Satíricon”, além de misturar prosa e verso, também mescla trechos em latim clássico e latim vulgar.

A atualidade do texto, segundo o diretor, foi o estopim para buscar “uma nova forma teatral, que vá além do espetáculo, simplesmente”. O resultado dessa busca foi a forma tríptica em que se incluem uma experiência sensorial e uma “rave teatral”.

A obra de Petrônio foi escrita provavelmente durante o reino de Nero (37-68 d.C.) e chegou fragmentada aos nossos dias. Seus personagens centrais são Encólpio, Gitão e Ascilto. Eles formam um triângulo amoroso em que a luta pela sobrevivência envolve todo tipo de pequenos trambiques.

Encólpio é um ex-gladiador e amante de Gitão, um belo jovem de 16 anos. O ex-gladiador, condenado à impotência pelo deus Príapo, luta para evitar que seu jovem amante seja seduzido por rivais. Ascilto é um amigo de Encólpio que, no passado, provavelmente também foi seu amante. Gitão acusa Ascilto de tentar seduzi-lo, suscitando a ira do amante mais velho.

A partir desse conflito, os personagens embarcam em peripécias que envolvem a tortura sexual conduzida por parte de uma seita priápica de mulheres, um naufrágio, um banquete oferecido por um aristocrata – que termina com um falso funeral e um falso incêndio – e mais brigas em torno do jovem Gitão, disputado não apenas por Ascilto e Encólpio, mas também por um poeta.

As três partes do Satyricon paulistano poderão ser vistas separadamente, em temporada que irá de quinta a domingo até 26 de maio. A “Suburra”, “uma rave teatral”, tem duração de uma hora, em que o público é convidado a seguir ações físicas propostas pelos atores. “É uma balada performática, não segue nenhum modelo.”

Ao final, pode-se ficar para uma festa como as demais. “Mas não creio que vamos deixar entrar mais gente, para não perder o vínculo com a origem teatral”, diz o diretor. E ele adverte: “no Festival de Curitiba, as pessoas iam ver um espetáculo teatral e não entendiam quando se deparavam com algo tão diferente”.

Segundo García Vásquez, a própria classe teatral tinha mais dificuldade em se envolver com o projeto do que o público. “Os espectadores estavam plenamente dispostos a se divertir, simplesmente.”

“Satyros’ Satyricon”
Teatro Satyros 2 – praça Roosevelt, 134, SP, tel. (11) 3258-6345; de qui. a dom., às 21h; de 13/4 a 26/5. R$ 20

Fonte: Valor Econômico, 12 de abril de 2012

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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