O mundo que eu idealizo se assemelha ao da pequena Isabel

Na cidade do Mindelo, em Cabo Verde, tive uma tarde com a minha afilhada, Isabel. Um programa planejado para que tivéssemos um tempo de intimidade. Combinamos que seria ela a decidir o nosso destino. Isabel foi rápida e enfática:

— Vamos ao parque!

Então, na manhã daquele dia fui fazer câmbio de euros para escudos. Tinha que estar preparado. Afinal, precisava impressionar a jovenzinha, seria o nosso primeiro passeio. A última vez que havíamos nos encontrado ela era pouco mais do que um bebê.

Na tarde marcada apanho a pequena e, primeira surpresa, vamos a pé! Mãos dadas, rumamos ao parque. Isabel tem cinco anos e é uma garota muito especial. Esperta, tem uma sensibilidade peculiar. Quer ser bailarina quando crescer.

Quando chegamos ao parque, mais uma surpresa: era público, não precisaríamos pagar nada. E o parque era muito especial, com muitos brinquedos, todos em excelente estado de conservação, com informações sobre suas utilizações e as devidas indicações etárias.

Ficamos ali por algum tempo, tomamos sorvete e, em seguida, vamos a uma loja de brinquedos. Na verdade uma loja chinesa, dessas com muitas coisas a preços populares. Como eu estou rico, rs – só compramos dois sorvetes até agora –, proponho-lhe:

— Você pode escolher o que quiser aqui. Tudo o que quiser, o padrinho paga.

Adoro fazer isso com crianças. Amo. Porque você dá a elas um poder que normalmente nunca experimentaram. No Macdonald’s, então, é uma delícia. Raramente conseguem comer mais do que um trio-qualquer-coisa. Mas a sensação de empoderamento sempre resulta num brilho especial em seus olhos, é sensacional.

E lá foi a minha pequena Isabel toda feliz pela loja, escolhendo seus presentes. Depois de uns quinze minutos mexendo em tudo, volta com um óculos de sol todo colorido, umas pulseiras, uns grampos para cabelo, uns adesivos coloridíssimos, uma vaca cor-de-rosa e mais uma meia dúzia de coisas similares. A conta, mais ou menos uns 30, 40 reais.

Eu ainda insisto pra que ela leve mais alguma coisa. Depois de pensar um pouquinho, volta com mais uma cartela de adesivos e me diz:

— Estes são pra mamã.

Escrevo do aeroporto internacional da cidade do Sal, aqui em Cabo Verde. E levei o maior susto quanto cheguei aqui. É, de longe, um dos aeroportos mais incríveis que já conheci no mundo. Pelo menos o mais humano é, de certeza.

Primeira surpresa: Wi-Fi aberto em todas as suas áreas — aliás, isso não é mérito só do aeroporto, não; no país todo a internet é gratuita e pode ser acessada em qualquer lugar.

No aeroporto, em sua parte interna, existe um grande espaço ao ar livre para as pessoas relaxarem, fumarem um cigarro; inclusive, um grande lago com pedrinhas para descansarem seus pés na água. Detalhe curioso: esta área ao ar livre ocupa cerca de uns 30% da área total da construção. E não é que deixaram de construir lojas para dar mais conforto aos seus usuários? Impressionante!

Então comecei a pensar nas cidades que conheci por aqui e constatei que todas elas, sem exceção, valorizam muito as pessoas. As cidades daqui gostam de gente! As ruas são bem limpas e existem sempre concentração de pessoas nas praças que, às noites, se enchem de famílias, crianças e jovens. Em uma delas, encontrei até coreto com banda tocando marchinhas.

Aqui na cidade do Sal, vi vários banheiros públicos pela cidade, sempre organizados e limpos. Também a quantidade de cafés impressiona.

Isabel em um dos brinquedos de seu parque de diversões preferido, em Mindelo, Cabo Verde

Não existem shoppings centers em Cabo Verde. Pelo menos como conhecemos no Brasil. No máximo, centros comerciais. E se você quiser comprar sapatos, por exemplo, não encontrará uma grande loja com centenas de opções.  Mas, espera aí, não pensem que o país é desprovido de possibilidades para suas compras. O que não existe é esse culto ao capitalismo, como vemos em países como o Brasil.

Um parque de diversões como o de Isabel, não existe nas cidades brasileiras, infelizmente. Nem nas cidades mais organizadas do interior do Brasil. Nenhuma praça daqui – ou pelo menos as utilizações delas – têm similares no Brasil.

O que vemos acontecer em São Paulo, por exemplo, onde as praças sequer têm lugares para seus frequentadores se sentarem – a Praça da República, em São Paulo, é um bom exemplo –, não ocorre em Cabo Verde.

Outra coisa curiosa que vi por aqui e que não encontrei em nenhum outro lugar. Em dois dos hotéis em que me hospedei haviam pequenas bibliotecas em suas áreas comuns, de livros deixados ou esquecidos pelos seus hóspedes, onde você pode, se quiser, deixar ou pegar um livro dali.

Fico pensando na humanidade das cidades que a todo instante vai desaparecendo, cedendo seu lugar para o sombrio das arquiteturas cada vez mais funcionais, cada vez menos humanas. Niemeyer parece que entendia muito bem desse assunto, uma vista de olhos em Brasília e já dará para ter entedido tudo. Cidade funcional para afugentar seus moradores porque lugar de gente séria é dentro de casa ou de shoppings centers. Que triste!

O mundo que eu idealizo se assemelha muito mais ao mundo onde habita a pequena Isabel. Com escambos de livros, um parque de diversões público que ela adora e uma loja cheia de óculos de sol coloridos, pulseiras, grampos para cabelo, adesivos coloridíssimos e vacas cor-de-rosa.

 

* Na imagem em destaque, espaço ao ar livre dentro da área de embarque do Aeroporto Internacional da Cidade do Sal, em Cabo Verde

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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