O MANIFESTO | Por uma psicanálise decolonial

Por uma Psicanálise decolonial

Quando o inconsciente também tem cor, território e memória

Não somos figurantes na cena universal que a Europa acredita dirigir. Importa afirmar: a psicanálise nasceu da desobediência de ouvir o que não se queria ouvir. Desde Freud, nossa prática nos convoca a escutar aquilo que causa incômodo, o que escapa ao discurso oficial, aquilo que retorna como sintoma: nos corpos, nos laços e nas palavras.

Por isso, escolhemos escrever. Escrevemos para lembrar. Para denunciar. Para dizer que não nos calamos diante da violência que se disfarça de teoria, da arrogância que veste o manto da neutralidade, do colonialismo que insiste em ocupar práticas, instituições e discursos sob o nome de “ciência”.

Em 2019, uma notícia do Le Monde anunciou um manifesto publicado por um grupo de 80 psicanalistas franceses que denunciava o pensamento decolonial como uma ameaça totalitária. Acusava-o de “vitimismo” e de “narcisismo das pequenas diferenças”. Reivindicava um suposto universalismo psicanalítico. Mas o que defendia, na verdade, era um lugar de privilégio racial, social e geopolítico, travestido de neutralidade.

Sob o pretexto de defender a psicanálise contra “ideologias identitárias”, o que está em jogo, nesses episódios, é a recusa em reconhecer que as marcas da colonialidade não são apenas um tema sociológico. São também um trauma psíquico, um ferimento histórico que atravessa a constituição subjetiva.

Negar isso é negar a própria experiência do inconsciente.

O inconsciente não é neutro. Freud o sabia. Nossos sintomas, fantasias e identificações não emergem no vazio. São atravessados pela cultura, pela história e pelo laço social. Ignorar que as feridas do racismo, da colonialidade e das desigualdades estruturais afetam a subjetivação é abandonar a escuta. E, portanto, trair a própria ética da psicanálise.

Mais ainda: o inconsciente não fala apenas com sotaque europeu. Há outros inconscientes, outras dores, outras cores, outros modos de sofrimento e de resistência que não se deixam reduzir ao modelo ocidental, branco, burguês e falocêntrico. Recusar-se a ouvir esses inconscientes é, paradoxalmente, reduzir a psicanálise ao mais estreito dos comunitarismos: o comunitarismo europeu.

No último dia 20 de junho de 2025, durante o Colóquio Brasileiro de Psicanálise – “Diversidade, Identidade, Singularidade: um ponto de vista psicanalítico” – realizado na Embaixada do Brasil em Paris, vozes brasileiras – múltiplas, complexas e enraizadas na nossa história – se levantaram para pensar a psicanálise a partir das feridas e potências decoloniais que nos constituem. E o incontornável mal-estar do colonialismo não tardou em emergir. Quando a Europa não é o centro, quando o saber não fala francês, a escuta hegemônica se fecha.

Essa recusa não é apenas uma postura política. É também um sintoma. Um ato falho colonial, que revela o que Freud sempre soube: o recalque retorna, mais cedo ou mais tarde.

A colonialidade não é apenas um capítulo da história. É sobretudo sintoma, ferida aberta, trauma vivo, que insiste em retornar na linguagem, no corpo, na teoria. O racismo não é um acidente brasileiro, mas a espinha dorsal do capitalismo global. A psicanálise não pode mais fingir que não vê, sem trair a si mesma. Hoje, data em que celebramos o centenário de nascimento de Frantz Fanon, cabe lembrar um de seus mais preciosos ensinamentos: “O colonizado que descobre sua condição começa já a mudá-la.”

Nós descobrimos a nossa. A colonialidade não termina com as bandeiras. Ela marca a pele, o corpo, a língua e os silêncios. Ela estrutura o desejo e as violências que atravessam o sujeito.

Isildinha Baptista Nogueira, que também nos guia, após quatro décadas de resistência subterrânea, ensinou-nos que sustentar-se num mundo que desqualifica a pele, a cultura e a memória exige uma coragem que não se aprende nos manuais. Sua obra A Cor do Inconsciente nos convoca a respirar e resistir. A não aceitar a neutralidade como disfarce de violência. A escuta verdadeira não se oferece de cima para baixo. Ela se conquista com paciência, com dignidade, com poesia.

Por isso, afirmamos: o inconsciente não é neutro. Ele tem cor, tem território, tem história e memória. Negar isso é amputar a escuta. Negar isso é trair a ética da psicanálise.

A psicanálise nasceu para escutar aquilo que ninguém queria ouvir. E hoje precisa ter a coragem de escutar também as feridas abertas pela colonialidade e pelo racismo estrutural, tornando-se, enfim, o que promete: um campo de escuta para o humano. Todo ele.

Nossa fala é um direito. Uma urgência. Uma exigência ética.

A psicanálise não é propriedade da Europa, nem do Brasil, nem de um grupo racial, nem de uma classe social, nem de um determinado gênero. Ela não nasceu para proteger privilégios. Ela só se justifica quando abre espaço para a escuta radical do sofrimento humano em toda a sua complexidade.

Por isso, nós, psicanalistas que subscrevemos este manifesto, convocamos colegas de todas as tradições, escolas e orientações teóricas – freudianas, lacanianas, winnicottianas, kleinianas, bionianas, independentes e outras – bem como pensadores de todas as áreas do conhecimento a se unirem no compromisso de:

— Reconhecer as marcas psíquicas da colonialidade, do racismo e das violências estruturais na constituição do sujeito;

— Recusar a naturalização de um universalismo branco, europeu e burguês como única matriz da subjetividade;

— Acolher e legitimar as vozes, saberes e práticas psicanalíticas que emergem de outras geografias, corpos e experiências;

— Decolonizar a escuta clínica, abrindo-se para as singularidades que habitam nossos consultórios, nossos territórios e nossos tempos.

Não ocuparemos o lugar subalterno que tentaram nos impor. Não seremos a senzala da sua casa grande, como diz Thamy Ayouch. Não nos silenciaremos.

Seguiremos construindo outros abrigos, outras cenas, outros espaços de escuta.

Por uma psicanálise decolonial, viva, plural e comprometida com sua vocação original: escutar o que dói, o que divide, o que foi recalcado – e abrir caminhos para novas gramáticas.

São Paulo, 20 de julho de 2025

Coletivo Cinema e Psicanálise nas Brechas (Isildinha Baptista Nogueira, Ana Lucia Bastos, Bruna Elage, Ivam Cabral, Lilian Carbone, Luciana Chauí, Patricia Villas-Bôas, Roberta Kehdy, Rodolfo García Vázquez e Vera Lucia Barbosa)

 

Assine aqui: Por uma psicanálise decolonial

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1899

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo