A própria pandemia da Covid-19 tornou-se tema frequente entre os espetáculos
Daniel Schenker, especial para O GLOBO
RIO — No início da década de 1970, o encenador Peter Brook passou meses na África realizando apresentações em diversas regiões. Fazia teatro com poucos elementos, apostando na interação direta entre atores e espectadores que sequer falavam a mesma língua. Quase 50 anos depois, os artistas vivem uma experiência contrastante: diante do distanciamento social imposto pela pandemia do coronavírus, começaram a se dedicar a sessões virtuais, propiciadas pelos aparatos tecnológicos.
A impossibilidade do encontro entre o artista e a plateia num espaço comum faz com que alguns não percebam tais práticas como próprias do teatro, enquanto que outros consideram ultrapassada essa discussão. Ao longo de 2020, vários trabalhos foram formulados para as plataformas virtuais e houve aqueles adaptados para esse campo.
Entre os espetáculos que atravessaram o ano, cabe destacar certas tendências: a necessidade de abordar o aqui/agora (a pandemia, além de determinar a concepção das encenações, despontou como tema frequente), a constância com que os atores deram vazão ao depoimento pessoal (relacionado ou não ao desestabilizador instante imediato), a valorização de propostas interativas (talvez como maneira de diminuir a distância geográfica entre as montagens e os espectadores) e o investimento em projetos de tamanhos diferentes (tanto espetáculos com grande número de atores quanto monólogos).
Bastante produtiva no decorrer do ano, a companhia Os Satyros dialoga com o presente e o futuro em “A arte de encarar o medo”, encenação de Rodolfo García Vázquez pensada para o meio virtual, ao propor uma situação em que os personagens estão em quarentena há 5555 dias. São habitantes enclausurados de um mundo irrespirável, despersonalizado e apocalíptico.
O elo com os espectadores se estabelece antes do início da sessão, através do pedido para que cada um relate, no chat, sobre os medos individuais nesse momento. A interatividade surge em outras iniciativas, como “Na sala com Clarice”, junção de textos de Clarice Lispector, em lembrança ao centenário de nascimento da escritora, com interpretação de Odilon Esteves, e “Parece loucura mas há método”, da Armazém Companhia de Teatro.
Cenas da vida pessoal
O coletivo Complexo Duplo também mira o futuro em “Dois (mundos)”, reunião de seis episódios concebidos a partir das músicas do lado A do álbum “Dois”, do grupo Legião Urbana, lançado em 1986. Nesse trabalho conduzido por Felipe Vidal, os atores evocam a década de 1980, frisam tomadas de posição em relação ao contexto de 2020 e conversam com o ano de 2054. Esse panorama é articulado com depoimentos sobre vínculos afetivos com parentes, em especial com os filhos, justamente aqueles que construirão o futuro.
As vivências dos integrantes do elenco ganham importância em “Jacksons do Pandeiro”, musical da companhia Barca dos Corações Partidos assinado por Duda Maia. Os atores entrelaçam ocasionalmente a jornada do homenageado com suas próprias trajetórias. Viabilizar a apresentação desse espetáculo exigiu um esforço particular: seguindo à risca os protocolos de segurança, os artistas retomaram os ensaios e gravaram uma live, depois exibida durante um mês no YouTube.
A utilização da vida pessoal como matéria-prima de trabalho é a base de “O pior de mim”, monólogo de Maitê Proença dirigido por Rodrigo Portella. A atriz traz à tona seu trágico passado familiar. Os espelhos distribuídos pelo palco que multiplicam a imagem da atriz, registrada em ângulos distintos, potencializam a percepção de alguém que, apesar de se sentir amputada, possui facetas variadas.
Esse solo fez parte do projeto Teatro Já!, idealizado por Ana Beatriz Nogueira e André Junqueira, no qual os atores se apresentam no Teatro Petra Gold para uma plateia simbólica composta por um espectador, e para câmeras que possibilitam a exibição do espetáculo a um vasto público virtual.
As apresentações virtuais trazem como vantagem o acesso de espectadores de outras localidades, mas não substituem o acontecimento ao vivo. De qualquer modo, é o que de mais próximo do teatro se pode ter nesses tempos de exceção.
Fonte: O Globo