O dia em que eu deixei de passar uma tarde com a Eartha Kitt por causa da Jurema de Ribeirão Claro

A Jurema vivia na minha cidade, Ribeirão Claro, no interior do Paraná e era freguesa da minha mãe Eunice, costureira, que fazia os vestidos mais lindos do mundo pra ela.

Ninguém sabia direito quem era a Jurema, que havia aparecido na cidade apenas dizendo que queria começar uma vida nova. Muitas histórias rondavam sua vida. Porque Jurema não ia à igreja, diziam que ela havia sido excomungada em sua cidade natal e que teria vindo pra Ribeirão Claro para fugir do passado.

Nossa, falavam muitas coisas da Jurema. Até que era muito, muito rica e que tinha feito voto de pobreza. A verdade que sabíamos é que a moça, muito jovem ainda, chegou na nossa cidade para habitar uma das casas de aluguel dona Mariazinha. E que recebia uma pensão do pai militar que havia morrido.

Isso era verdade porque a Monalisa, que trabalhava na Caixa Econômica Federal, havia confirmado a história da aposentadoria e, pra deixar tudo mais mirabolante, revelou que a moça tinha uma caderneta de poupança com não sei quanto milhões de dinheiros.

Assim, Jurema despertava na cidade um misto de respeito e desprezo. Mas nenhum moço da cidade quis se aproximar dela e a Jurema nunca namorou ninguém. De vez em quando surgia um boato de que o marido de não sei quem tinha sido visto saindo da casa da Jurema.

Mas Jurema, apesar de ter aqueles milhões na caderneta de poupança e receber uma bolada de aposentadoria, não ostentava. Viveu na casa de aluguel da dona Mariazinha a vida toda. Seu único luxo era fazer com a minha mãe uns quatro ou cinco vestidos por ano.

Um dia, já morando em Curitiba, numa das conversas ao telefone com a minha mãe, fiquei sabendo que a Jurema tinha ido embora de nossa cidade. Que tinha sido esquisita a sua mudança, ocorrida durante a madrugada, sem ter se despedido de ninguém. Lembro da minha mãe dizer:

— Fiquei triste, gostava da Jurema, pensava que ela era minha amiga. Tantos anos costurando pra ela…

O tempo passou, fundei Os Satyros e estava em Londres, em cartaz com “A Filosofia na Alcova”, no lendário Battersea Arts Centre, o BAC, perto da estação ferroviária de Clapham Junction, em Battersea, no bairro de Wandsworth. O edifício, na verdade um centro cultural com salas de teatro e exposições, havia sido inaugurado pela Lady Di, a princesa, de acordo com uma placa na entrada do prédio.

Era uma tarde e naquele dia fomos mais cedo para o teatro para ver um ensaio da Eartha Kitt, que também se apresentaria no BAC naquela noite. Como os horários das apresentações da cantora batiam com os nossos, a direção do centro cultural nos convidou para assistir ao ensaio geral daquele mito, que havia interpretado a Mulher Gato no seriado Batman, que eu assistia na minha infância, na casa de amigos porque não tínhamos televisão em casa, e que Orson Welles havia chamado de “a mulher mais excitante do mundo”.

Quando subíamos a escadaria que dava pra entrada do BAC, próximo à placa de inauguração do teatro, ouço:

— Jureeeeeeeeeeeemaaaaaaaaa do céu, tá escrito aqui que foi a princesa Diana que inaugurou esse negócio aí.

Levo um susto. Primeiro, porque estou em Londres e ouço falarem a minha língua. Naquele tempo não era comum encontrar brasileiros viajando para o exterior, isso foi em 1993. Segundo, porque ao ouvir aquele nome, impossível não me lembrar da Jurema de Ribeirão Claro.

Olho em direção àquela voz e vejo duas mulheres, quarenta e tais anos, bonitas e espalhafatosas, e, pra minha surpresa, reconheço a Jurema da minha infância. Neste exato momento Jurema também me olha e começa a gritar o meu nome.

Nos abraçamos, enquanto os meus amigos estão me chamando pra entrar porque não tínhamos muito tempo e o encontro com a Eartha Kitt iria começar.

Mas não tive dúvidas, embora eu sinta não ter conhecido a musa e intérprete de “Where Is My Man”, que eu dancei como louco nos anos 1980, e tirado uma foto com ela – sim, meus amigos jogam isso na minha cara até hoje –, rever a Jurema tinha um sabor especial. Sem contar que eu estava comichando de curiosidade, não só de saber o que ela estava fazendo em Londres, mas saber de sua história em Ribeirão Claro, perguntar como ela tinha ido parar lá, dos milhões que ela tinha depositado na caderneta de poupança da Caixa Econômica Federal, da história da excomungação, dos amantes, enfim, tudo.

Mas o que se sucedeu naquela tarde continua a ser um mistério até hoje. Porque a Jurema não me deu espaço para fazer qualquer pergunta. Durante umas duas horas, ela não parou de falar nenhum segundo, contou histórias de vestidos que tinha feito com a minha mãe, de como gostava da minha mãe e, em meio a um falatório interminável, fomos até uma loja de turistas e ela comprou um cartão postal pra enviar a minha mãe, escreveu, selou, passou um batom vermelho, beijou o cartão e me fez caminhar com ela umas muitas quadras para depositar o tal cartão numa caixa de correios, enquanto não parava de falar de histórias que havia vivido em Ribeirão Claro.

Já anoitecia quando percebi que não sabia o nome da mulher que estava com ela e que ficou calada, caladíssima, durante todo o tempo que estivemos juntos, mas Jurema não deu chance de mais nada. Parou um taxi e, enquanto falava, entrou no automóvel ao mesmo tempo que se despedia de mim.

O cartão postal da minha mãe nunca chegou e eu nunca mais ouvi falar da Jurema…

 

Aqui, o clipe de “Where Is My Man”, de Eartha Kitt, que eu dancei alucinadamente nos anos 1980:

 

 

 

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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