Crítica: Nos campos da solidão


Foto: Flavio Morbach Portella

Santa Efigênia teria nascido na Etiópia e se tornou lenda religiosa a partir do século 13. Ficaria abismada se descobrisse seu nome na rua paulistana que é um pátio dos milagres eletrônicos. Essa religiosa, identificada com a Ordem dos Carmelitas, que tem entre seus princípios o voto de silêncio, hoje é sinônimo de comercio miúdo da comunicação entrópica do ‘tudo ao mesmo tempo agora já’. Da globosfera na qual uma pessoa, mesmo sem ter companhia na vida real, pode se conectar com centenas de amigos virtuais.

Se os religiosos carmelitas creem buscar o divino ao se calarem, o espetáculo Cabaré Stravaganza fala do seu contrário. Do território de mentes superativadas que a neurociência ainda não sabe decodificar. Também a época da mecanização dos corpos criando mentes/almas de robô. É por esses caminhos que vai a nova e vigorosa criação do grupo Os Satyros que, fiel ao nome, trafega outra vez no limite da transgressão comportamental, que sempre contém violência e, ao mesmo tempo, prega amor e solidariedade.

Seu evento-multimidia é uma tentativa de relatar o que está acontecendo. Quem é androide e quem é gente, ou tudo ficou mais ou menos igual? O sistema de comunicação do grupo com os espectadores reflete um pouco, talvez, o que se passa. Não há mais, ou ainda, (e talvez não haja) o programa em papel com dados da montagem (elenco, ficha técnica) e sua justificativa. As informações estão no site da companhia. O secular papel jornal traz aqui, então, um resumo do site que, entre outros pontos, fala das crianças e adolescentes da atualidade que brincam com videogames e desconhecem a bicicleta. Apresentam dificuldade muito maior do que gerações anteriores em distinguir a diferença entre o mundo real e o virtual. Pode-se dizer que, de certa forma, a esquizofrenia ficou ‘normal’. E os adultos que usam celular em velórios, igrejas? Esses neozumbis estão matando o rito teatral com suas telas azuladas, onde buscam torpedos que reiteram suas vidinhas apressadas.

O teatro vai ceder? Ouçamos os artistas: ‘A utilização dos celulares por esses jovens encontra-se, portanto, em um novo lugar do humano, que também é outro lugar teatral: eles não são um signo teatral tradicional como um adereço; ao contrário, fazem parte da própria identidade social destes jovens, participando do cotidiano do ator-adolescente e de sua forma de se comunicar com o mundo. São próteses tecnológicas de uma humanidade cibernética. Os antropólogos ciborgues, como Amber Case, diriam que vivemos na condição ciborgue toda vez que agimos através de aparatos tecnológicos como celulares carros e laptops. Tanto os espectadores quanto os artistas do novo teatro estarão, portanto, marcados pelo espírito ciborgue’.

De novo a questão: o teatro vai ceder a uma ideia de progresso que traz junto a idiotia? Seria estranho se desse aval pleno a um fenômeno recente (a figura de Steve Jobs oscila ainda entre a genialidade e a tirania). Aí teríamos arte destituída de dúvidas. O mesmo texto acrescenta, porém, que ‘o teatro vive uma relação intensa e contraditória com ele, ora negando suas influências, mantendo-se fiel à sua história e à preservação de ideais anteriores de humanismo, ora incorporando os elementos deste novo tempo e antecipando tendências’. Ou seja, esse universo ultratecnológico está em discussão, criticado e repensado.

Como tradução cênica de ideais contraditórias, Stravaganza tem beleza e inteligência como imagens e representação. Um cabaré encoberto, cuidadosamente, com um leve manto pós punk. O texto de Maria Shu encadeia cenas poderosas e sequências dispersas e sem força. Escrita impetuosa a pedir melhor organização dramática. Esse ‘futurismo’ sem alegria une os que precisam mudar de sexo, os necessitados de próteses por doenças e deformações aos que se entregam ao esforço vão de conter o tempo com plásticas, silicones, etc. Dorian Gray (Oscar Wilde) tinha uma filosofia de vida. Seus descendentes, nada.

O enredo inclui instantes de igualitarismo quando se esquece um pouco os que estão fora do chamado bom comportamento, a saga, a épica dos travestis, para notar o porteiro, simples heterossexual, que se atirou do edifício. O simpático pendor pelo melodrama resgata os Satyros da histeria autoritária dos furiosamente modernos, dos ‘muito loucos’ e muito ‘dionisíacos’, os maníacos por Rimbaud e Artaud. Rodolfo Garcia Vasquez torna-se poeta do espaço ao transfigurar em caleidoscópio o cubo negro do teatro (em parceria com o cenógrafo Marcelo Maffei). O elenco reúne talentos emergentes e as marcantes e conhecidas presenças de Ivam Cabral e Cléo de Paris no jogo de luz e sombra do Cabaret Stravaganza, alegoria de um mundo novo não necessariamente admirável.

Fonte: Jefferson Del Rios. O Estado de S. Paulo, 15 de novembro de 2011

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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