No streaming, atores ainda sentem solidão da coxia e expectativa da plateia

por Clara Balbi

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O coronavírus por pouco não entrou na remontagem de “Roda Viva” do Teatro Oficina, que há um ano lota a sede do grupo no Bixiga.

Diretor da companhia, José Celso Martinez Côrrea conta que um globo no formato da Covid-19 cairia do teto ao mesmo tempo em que uma cortina de plástico separaria o elenco do público. Uma faxineira então distribuiria luvas e máscaras aos atores – que romperiam o “clima terrível” num sapateado que tocaria os pés dos espectadores.

O vírus cênico já estava pronto, mas não deu tempo de ser mostrado ao público. No dia anterior à reestreia da temporada, em meados de março, a prefeitura paulistana suspendeu a programação de todos os seus equipamentos culturais, atitude logo seguida por todas as outras peças da cidade.

Um mês e meio depois, produtores teatrais acreditam que a paralisação está longe de acabar. Mesmo depois do fim do período de isolamento social, o medo de frequentar espaços fechados deve continuar, em paralelo à crise econômica. A expectativa é que só haja novas estreias no ano que vem.

Enquanto isso, a área passa por uma crise sem precedentes. Só em São Paulo e no Rio de Janeiro, são cerca de 12 mil artistas e técnicos sem trabalho, segundo os cálculos da Associação de Produtores de Teatro, a APTR.

Mesmo com os esforços de alguns governos municipais e estaduais, que lançaram editais e linhas de crédito a juros baixos, a penúria é tal que algumas entidades de classe iniciaram campanhas de distribuição de comida e de cotas de auxílio emergencial.

No Rio de Janeiro, a APTR atendeu 300 famílias do setor com um programa de vales-refeição de R$ 500 -o objetivo é chegar a mil. Em São Paulo, a Associação de Produtores Independentes, a APTI, já angariou por meio do fundo Marlene Colé cotas no mesmo valor suficientes para atender 170 famílias. Ainda distribuirá mil cestas básicas, diz Odilon Wagner, diretor vice-presidente da organização.

“Não podemos ficar esperando. Precisamos arrecadar. Por isso estamos firmes nessa campanha”, ele afirma.

É uma visão compartilhada pela maioria dos profissionais do teatro. Em especial diante da inação da secretária especial da Cultura, Regina Duarte, durante a pandemia. Desde que assumiu o cargo, no início de março, ela só anunciou duas ações para enfrentar a crise, uma delas a flexibilização da prestação de contas dos projetos incentivados.

Medida que, na prática, contempla muito pouca gente, afirma a produtora carioca Renata Borges, responsável por trazer ao Brasil musicais como “Cinderella”. “A meu ver, só ajuda quem tem projeto captado ou em execução, o que não é o caso da grande maioria da cultura no país.”

Um exemplo é o próprio Oficina, que sobrevive de bilheteria desde que perdeu o patrocínio da Petrobras, há quatro anos.

Falando com a repórter nesta semana, Zé Celso disse que acabava de ficar sabendo que o dinheiro da companhia, que emprega cerca de 70 artistas e técnicos, tinha se esgotado depois do pagamento dos salários do administrador do espaço e dos porteiros.

“Nenhum de nós tem dinheiro. Não tenho propriedade, nada”, diz o diretor de 83 anos, acrescentando que agora tenta articular uma rede para pagar as contas e ajudar os atores com dificuldades.

Zé Celso tem aproveitado o período de quarentena para escrever um livro com o assistente, Beto Eiras, e rever montagens históricas que o Oficina disponibilizou na internet -ele assistiu a “Os Sertões” e a “Cacilda!”, mas a favorita foi “Os Bandidos”, escorraçada pela crítica ao estrear.

Ele gravou ainda uma participação num podcast dirigido por outro diretor do Oficina, Marcelo Drummond, uma versão da novela radiofônica “Pra Dar um Fim no Juízo de Deus”, de Artaud, a ser lançada em duas semans. E deve participar de duas lives em breve. “Problema de criatividade não temos”, resume.

Segundo Zé Celso, o coronavírus representará uma quebra de paradigma. A começar pelo próprio Oficina. O teatro desenhado por Lina Bo Bardi, eleito o de melhor arquitetura do mundo pelo jornal britânico The Guardian, talvez tenha de mudar sua configuração, com a retirada das estruturas de ferro e a diminuição da capacidade do público.

Em compensação, o diretor espera que a pandemia, esse “espasmo do mundo”, traga à humanidade alguma consciência ecológica. E que seu fim seja como o da gripe espanhola no Rio de Janeiro em 1919, que culminou numa grande orgia carnavalesca.

Até lá, Zé Celso não teme pelo teatro, “que sobrevive sempre”. Ao menos, o teatro como o conhecemos, ao vivo, presencial, já que ele qualifica as muitas filmagens de espetáculos vistas na internet desde o início da quarentena como uma “ação de agora”.

Mesmo que temporária -e um tanto contraditória-, a adaptação para o streaming pode ser uma forma de as companhias pagarem as contas enquanto durar a incerteza.

É pelo que torce Ivam Cabral, um dos fundadores do grupo Os Satyros. Com a suspensão dos espetáculos e oficinas formativas e o fechamento do bar que administram na praça Roosevelt, eles se viram obrigados a fechar um dos espaços que administravam na praça Roosevelt, o Estação Satyros.

Agora, eles temem ter de se desfazer também do Cine Bijou, que pretendiam reinaugurar. “Sabe esses médicos que têm que optar por dar o respirador a um ou outro paciente?”, compara Cabral.

“Até o início de abril eu e o Rodolfo [García Vázquez, cofundador do grupo] fizemos um malabarismo terrível para honrar nossos compromissos, entramos no cheque especial. Mas não sei por quanto tempo vamos aguentar.”

Cabral encena seu monólogo “Todos os Sonho do Mundo” no Instagram, ao vivo, desde o começo da quarentena. Ele diz que a sensação de se apresentar para um público virtual não é tão diferente assim -a antecipação da plateia, a solidão da coxia são as mesmas daquelas do teatro convencional.

Esta semana, ele migra as apresentações para uma plataforma de streaming criada pela empresa de venda de ingressos Sympla, que permitirá que ele cobre entradas. Enquanto isso, ensaia por videoconferência esquetes inéditas com outros 11 atores da trupe, “peças em armários, em fogões, dentro da geladeira, do vaso sanitário”, descreve.

O diretor diz que não tem certeza de que a empreitada vai funcionar, já que o público da internet costuma resistir a entretenimento pago. Mas acrescenta que o público tem demonstrado muita vontade de ajudar, em especial depois da notícia do fechamento do Estação Satyros.
“Até o ano passado, estávamos brigando muito com a sociedade, e de repente, com a pandemia, a arte passou a fazer muito sentido. Pois viver não basta.”

Fonte: Folha de S.Paulo, 30 de abril de 2020

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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