MEMÓRIA | Lucia e a minha questão inaugural

Eu conheci a Lucia Camargo em Curitiba, em 1985; em janeiro, precisamente. Naquela época, eu estava indo para o último ano do curso de Administração de Empresas, trabalhava no mercado financeiro e já começava a operar na Bolsa de Valores do Paraná, trilhando um caminho que era exclusivamente do mundo adulto. Tinha 21 anos e, diziam, um futuro brilhante pela frente.
 
Acontece que eu não estava feliz. Algo dentro de mim pedia que os rumos da minha vida mudassem radicalmente. E, naquele janeiro, tudo estava engatilhado para que isso acontecesse. Eu havia acabado de passar no vestibular do curso de Artes Cênicas da PUC e só me faltava uma coisa: coragem para mudar tudo.
 
Foi esse meu encontro com a Lucia que determinaria todo o rumo que a minha vida tomaria a partir de então. Naquele momento, uma única certeza: sem o curso de Administração de Empresas eu não teria mais a segurança do meu trabalho na grande corretora de valores, que apostava no meu futuro. E foi essa questão que pontuou minha conversa com a poderosa diretora do Teatro Guaíra que, me vendo falar com a atendente que efetuava a matrícula do curso, me chamou para uma conversa privada em sua elegante sala na Diretoria de Artes da Fundação Teatro Guaíra que, juntamente com a PUC/PR, oferecia aquele curso superior de teatro.
 
Lucia me fez uma pergunta, talvez a mais importante da minha vida toda:
 
— O que você seria capaz de fazer para conquistar os seus sonhos?
 
Eu me lembro de ter tentado dizer algo como “não passar por cima dos meus princípios”, “ser ético” e coisas parecidas, e ela me interromper:
 
— Pare de contornar as coisas. Você acha que eu estaria falando com alguém que não cumprisse seus apontamentos éticos? Você nem teria entrado nesta sala, caso eu não percebesse que você é uma pessoa legal. Então, pare de enrolação e responda: o que você faria para realizar seus sonhos?
 
A partir daquele momento, eu tomaria a decisão mais importante da minha vida inteirinha. Saí daquele encontro com uma bolsa de estudos integral para o curso todo (sim, anjos existem, aquele encontro também me mostrou isso) e poucos meses depois abandonaria o mercado financeiro pra sempre, sem nenhuma recaída. Só não foi imediatamente porque precisei criar um processo de transição que teria que dialogar com as incertezas que o futuro próximo me reservava. Porque, sabia, não seria fácil. E não foi – até hoje não é.
 
O tempo passou e passou rápido. Me formei neste curso de artes cênicas, vim pra São Paulo, conheci o Rodolfo, criamos Os Satyros, corri mundo e, de repente, estava de volta em Curitiba. Fins dos anos 1990. E foi, mais uma vez, um encontro com a Lucia, agora secretária de cultura, que mudaria os rumos da minha vida.
 
O ano: 1998, mês de março, um dia depois da entrega do troféu Gralha Azul, o prêmio mais importante do teatro paranaense, que naquele ano me premiaria na categoria de melhor ator; e, Os Satyros, como produção do ano, por “Killer Disney”, um texto lindo do Philip Ridley. Toca o meu celular, é a Lucia me parabenizando pelo prêmio, com um recado:
 
— Os parabéns pela premiação são apenas um pretexto. Liguei mesmo pra te mandar embora de Curitiba. Voltem pra São Paulo, o lugar de vocês é lá. Vocês já fizeram tudo o que tinham que fazer aqui.
 
Então eu obedeci a Lucia que, a partir desse momento, passou a ser a minha guru. E quis o destino que, em 1999, viéssemos juntos pra São Paulo. Ela, para assumir a direção do Teatro Sérgio Cardoso, primeiro, e depois o Theatro Municipal; e eu, para criar o Espaço dos Satyros na Praça Roosevelt.
 
Então nunca mais nos largamos. Lucia sairia de São Paulo, por um tempo, para trabalhar no Palácio das Artes, em Belo Horizonte; mas a partir de 2010 se juntaria a nós no projeto da SP Escola de Teatro.
 
Lucia nos deixou há um ano e eu ainda não consegui dizer adeus a ela. Me pego pensando nela a todo instante e, na noite passada, apareceu nos meus sonhos. Um sonho bonito onde ela me trazia, mais uma vez, a questão que inaugurou a minha vida no teatro. Entre muitos sorrisos, ela me provocava:
 
— Não vale mentir pra você mesmo. Vai, me responda, o que você seria capaz de fazer para conquistar os seus sonhos?
 
Então acordei pensando se eu deveria mesmo levar esta provocação a sério e responder, com sinceridade mesmo, a inquirição da minha guru mais amada. Haveria ainda tempo para mais sonhos?
 
+++ na foto, print de uma cena da peça digital todos os sonhos do mundo
Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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