MEIO AMBIENTE | O saruê e o bosque

Eu nunca entendi de urbanismo. Mas, aos poucos, fui compreendendo que o meio ambiente não começa nas árvores. Começa nas pessoas. Foi na Praça Roosevelt que esse pensamento me atravessou pela primeira vez, quando percebi que cuidar de gente é o primeiro gesto de cuidado com o planeta. A ecologia, antes de ser paisagem, é convivência.

No concreto da cidade, entre o ruído dos carros e o calor dos postes, fomos aprendendo a inventar brechas de sombra. Ali, o asfalto se tornou chão fértil. Com o tempo, o desejo de transformar aquele espaço árido em algo vivo nos levou a construir escolas,  plantar árvores, abrir conversas. A SP Escola de Teatro nasceu dessa vontade de curar cabeças. Porque talvez o equilíbrio entre natureza e humanidade comece pelo pensamento.

Plantar árvores no Brás foi um gesto simbólico. Mais de trezentas. E cada uma delas carregava um nome, um rosto, uma história. Algumas sobreviveram, outras não. Mas todas deixaram marcas. Asroseiras do pequeno jardim da escola – plantadas por Kimberly, que trabalhou conosco por tantos anos – continuam lá, florescendo com a mesma teimosia com que nascem as ideias. O que é a cidade senão esse jardim insistente, que floresce no meio do caos?

Veio a pandemia, e o mundo se recolheu. Eu também. Em Parelheiros, cercado de verde e silêncio, comecei a entender o que é o pertencimento. Não era mais sobre plantar árvores. Era sobre pertencer àquilo que se planta. Sobre conversar com os vizinhos, acolher os bichos, dividir a dor. Dividir o pão também. Cuidei de cobras feridas, abracei saguis assustados, devolvi quatis ao mato. Tudo isso me deu um tipo de alegria difícil de explicar. Como se a vida, finalmente, tivesse encontrado um ritmo que me cabia.

Plantei centenas de árvores com as mãos e com os outros. Vi crescerem mudas frágeis e mudas incríveis, vindas do Viveiro Manequinho Lopes, do Ibirapuera, que se transformaram em testemunhas do tempo. Foi ali que pensei, pela primeira vez, que talvez devesse ter estudado biologia. Nunca estive tão próximo da ideia de um mundo possível.

E agora, diante da destruição do bosque dos Salesianos, meu coração se despedaça. As imagens de troncos caídos, o chão devastado, o silêncio de um lugar que já foi canto. Tudo me atravessa como perda. Dói ver um saruê vagando entre os restos, procurando abrigo num clarão que antes era floresta.

Talvez o que falte à cidade não sejam árvores, mas escuta. Faltam pontes entre as pessoas. De um lado, o poder público, com suas normas e pressas. Do outro, a resistência dos que ainda acreditam que o verde pode salvar o cinza. E, entre eles, um saruê sem casa, lembrando que o meio ambiente, antes de tudo, somos nós.

E eu sigo acreditando, apesar de tudo, que cuidar do mundo ainda é possível. Mesmo que seja com o simples gesto de plantar uma árvore. Ou de olhar para um bicho perdido e reconhecer nele algo da nossa própria solidão.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1966

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